Eu andava de um lado para o outro, tentei controlar o choro e olhava para Dom deitado na cama improvisada, largado como se fosse um bicho, sem um mínimo de cuidados. Cheguei perto inúmeras vezes, mas me recordei que agora somos os traidores. Então coloquei a mão na testa do ruivo deitado e notei a febre alta.
— Não vão te dar medicamentos, vão? — falei baixinho, tirei uma mecha ruiva de cima do sangue e olhei seus olhos fracos.
— Vão. — sussurrou devagar — Eu acho.
— Você não estava levando a gente pra um lugar seguro, estava? — ele negou e eu enchi os olhos de água — Quando eu sair daqui, Dom… eu quero você longe de mim e da minha filha.
Eu fui pra um canto, sentei pensativa, chorei um pouco mais e ninguém apareceu. O frio do lugar estava forte, Dom tentou levantar e só gemeu de dor. Eu fui até as grades, gritei por alguém e nenhuma alma me ouviu. Estava ficando tarde, Pray precisava mamar e o meu peito doía. Eu gritei e chamei por ajuda, Dom me olhava sofrido e o meu chamado não foi atendido.
(...)
Minha cabeça estava doendo, enquanto eu acordava ouvindo o tilintar das grades acionadas. Eu me levantei, acolhida na maca junto com Dom, sem nem mesmo saber quando foi que ele passou o braço por mim e para o meu pesar, Kane e Sore estavam ali, me julgando com seus olhares.
— Cadê o Iron? — perguntei me levantando, enquanto Dom gemia por eu me mexer de uma vez e forçar o seu braço.
— Fica aí achando que ele vai se dar o trabalho de visitar cadelas fujonas. Sabe, eu gostava de você… — Ela bateu os saltos no chão enquanto Kane colocava o estetoscópio e ia, finalmente, prestar atendimento para o Dom.
— Cadê a minha filha? — resmunguei.
— Com o pai. — respondeu Sore, como se fosse óbvio — Com quem acha que ela está, comigo?
— Sore! — Kane chamou sua atenção, como se ele fosse um lembrete de limites para a mulher.
Eu fiquei de pé, saí pela lateral e quando ia atravessar as grades frias, ela me segurou, me jogou de lado e se colocou na saída.
— Eu preciso ir ver a Pray. — questionei, sem entender o que ela estava fazendo.
— Sua necessidade não é mais prioridade. Dom não faz parte da irmandade, e cadelas traíras também não. Se considerarem felizes por Iron não ter escolhido puxar o gatilho. — Ela cruzou os braços e eu olhei para Kane, tentando entender a situação. — Isso, olha pra ele. Ele tem coração, eu não.
— Eu quero ver a minha filha. — pedi, tentando não chorar.
— Eu não ligo pro que você quer. Eu não ligo mesmo. — Eu tentei passar de novo, mas ela me prensou contra a grade e manteve o olhar frio sobre mim. — Eu queria que ele tivesse te dado uma surra, uma baita surra. Eu queria que ele tivesse atirado naquele ruivo, só pra lembrar todo o inferno que a gente passou, livrando um do outro, cuidando um do outro, enquanto vocês treparam e mandavam a irmandade pro meio da sua xota! — Eu me puxei, ela sorriu e eu olhei para Kane, mas ele estava ocupado aplicando medicação em Dom — Mas eu admiro as jogadas dele. Ele sabe como fazer uma pessoa sofrer com vida. — Eu olhei para ela, franzi o cenho e continuei escutando — Ele foi embora, cadela vadia. Agora você pode dar pro ruivo a vontade, dançar “la cucaracha” e brincar de maria fuzil até que os trombadinhas que fazem os delitos de segunda mão na porta da sua casa.
O desespero bateu em meus olhos, meu peito falhou uma batida e dessa vez ela não me impediu de sair. Eu ainda estava suja, com o cheiro das últimas situações impregnada em meu corpo e com a cabeça inundada em desespero. Cheguei no quarto, abri a porta e vi o vazio do berço. A cama vazia, os armários vazios, as roupas da Pray… Tudo! Não tinha mais nada lá.
— Não… — Como quem não acreditava no que estava acontecendo eu vasculhei tudo, levantei colchão, olhei pro banheiro, chorei mexendo na banheira e toquei em tudo o que se podia tocar. Ele só deixou pra trás o presente que me deu. O cordão umbilical da Pray e a carta. — Não… Iron… Pray… — Enchi os olhos d’água, segurei meus cabelos e gritei de desespero. — Pray! Pray, minha Pray…!
Eu era uma vergonha chorona caída no chão, sem rumo e sem nenhum passo a dar. Eu não tinha saída, não sabia o que fazer e nem por onde buscar, eu só me sentia perdida, chorona e fracassada.
— Olha, se algum conselho ainda me cabe dar, eu acho que paciência é o melhor que posso te aconselhar. — Eu olhei para trás e vi Kane de braços cruzados, com um olhar penalizado, a barba num quadrado perfeito e um olhar cor de mel mirado pra mim. — Eu também posso dizer que é um ato desumano tirar o filho de uma mãe, mas o quão seria tirar um filho de um pai? Levando em consideração que nenhum de nós somos santos, então todos estão na mesma cadeia suja de julgamentos. Mas, se me cabe justificar, ele não fez isso pra te punir.
— Não…? — eu ri, entrecortada no choro.
— Ele nunca veio por você, Érina.
— Kane, eu achei que ele estava morto e eu realmente achei que Dom estava tentando melhorar as coisas e…
— Culpar o Dom por suas escolhas, também não vai te ajudar. — Eu me calei e ele me olhou duro. — Eu estava possesso quando fui buscar a Sore na máfia, mas você acha que o velho Ronn foi o culpado por eu puxar o gatilho? Você estava triste e sensível na sua gravidez, mas eu duvido muito que estava fora de si quando fez a sua escolha.
— Eu fiquei confusa. Achei que ia ser injusto com Dom e não queria que o Iron…
— O Dom está fora, e você também. — Eu olhei pra cima, me levantei devagar e tentei arrumar meus cabelos de um jeito organizado. — Aqui é o crime, gata. O mesmo crime que você escolheu quando voltou para trás. Sem flores, sem meio termo e sem penas para cadelas entristecidas. — Ele ainda tinha um tom brando. — Mas se o meu conselho ainda valer a pena, tenha paciência. A poeira precisa baixar.
— Kane, pra onde ele foi?
— Pra casa. — Eu fiquei perdida, porque até onde eu sei, Iron não tem casa. — A Pray precisa de você e ele sabe disso. Só tenha paciência, agora pega suas coisas e cai fora daqui. Sore vai manter uma vigia desgraçada pra ter certeza que você e Dom não vão sair da linha, e tenta não fazer movimentos bruscos. A comunidade não vai prestar muita ajuda se vacilarem de novo.
(...)
Eu tinha os cabelos presos no alto da cabeça, Dom tinha um olhar de culpa e soltava uma mala no chão. Ele não estava gozando de plena saúde, estava com um lado do rosto deformado, tinha pontos em cima do cílio e uma distribuição de roxos pela face. Adentramos a saleta do quarto, a portinha dava a vista para a vila de centro e tudo era do mais simples.
— Você podia melhorar sua cara, não é tão ruim morar comigo. — Eu entrei no cômodo, olhei pra ele e suspirei. — Se eu te pedir desculpa de novo, vai melhorar a sua cara?
— Meu problema não é o perdão, Dom. Kane tem razão, não posso culpar você por ter chegado onde cheguei, mas agora os panos estão claros. Eu não quero fugir com você, e vou morrer tentando chegar até a Pray. — Ele suspirou, desviou o olhar, passou as mãos pela cabeleira ruiva, mas concordou.
— É só uma questão de tempo, até a gente se estabilizar. — respondeu — Eu não posso cair fora, mas te ajudo a voltar.
— Porque não pode cair fora? — perguntei, achando que a parte do “traidor” já tinha sido condenada.
— Eu traí os dois lados, ao menos aqui a Sore não vai me dar um tiro na cabeça. E tem o Mars, ele me arranjou um bico na oficina, assim eu ganho uma grana e ele fica de olho. — Eu fiz uma negativa, sem conseguir ver muita saída naquilo. — Relaxa, a merda que eu podia fazer, eu já fiz. Você fica com a cama, eu fico no sofá. Sem visitas noturnas.
Eu não respondi, entrei pro quarto, tão simples e semelhante quanto o outro, um pouco mais apertado até que tranquei a porta. Silenciosamente eu coloquei a mala sobre a cama, abri um bolso de fora e peguei um pacote embrulhado no bolso, tirei de lá uma imagem que consegui de Kane. Iron estava mais jovem, não tinha a cicatriz do rosto e vestia o uniforme do exército, junto à carta que ele me deu, o umbigo gravado de Pray e uma foto dela. Kane pegou a imagem de Iron segurando a filha, sem que ele pudesse contestar e teve a consideração de me entregar. A única foto que eu tenho dela o Iron está junto, como que pra me lembrar das minhas consequências.
Agora eu não tinha mais escolhas, só me restava tentar. Eu já perdi Iron, só não podia perder minha filha.
(...)
TEMPOS DEPOIS…
Eu tentava praticar mais uma fuga, e não deu certo. Toda a vez que eu tentava, graças ao meu serviço amador, eu era pega. Era o único jeito que eu conseguia chamar um pouco a atenção de Sore, mas com o tempo, as minhas fugas começaram a virar rotina desnecessária pro itinerário dela. Eu podia ficar na área, e só. Tinha trabalho e tinha pouco dinheiro, só não podia pensar em sair. Mas dessa vez, a tentativa surtiu outro efeito.
Eu fui levada pro velho casarão, lugar onde muito bati na porta tentando falar com Sore e onde fui escorraçada, simplesmente chegando na beirada dos portões. O escritório permanecia o mesmo, grande e espaçoso. Me soltaram dentro da sala e me mandaram aguardar. E para a minha surpresa, Dom entrou. Já fazia um tempo que eu não o via, ele saiu de casa e cada um seguiu o seu rumo. Ele estava um pouco diferente, a barba um pouco relaxada e acho que ele fez mais algumas tatuagens. Kane também entrou na sala, em seguida da Sore.
Ele parecia mais forte do que da última vez que o vi e Sore usava seu típico batom vermelho, roupas chiques e sapatos bicudos. O cabelo ainda era um chanel branco, e eu me sentia um passarinho deslocado enquanto via ela se sentando na cadeira principal, se acomodando com as pernas cruzadas e me olhando com um certo nojo.
— De todas as vezes que eu tentei fugir, essa é a primeira vez que eu consigo reunir todo mundo. — Sore começou a rir imediatamente e eu olhei ao redor, me sentindo um tanto constrangida.
— Até parece que o seu serviço amador de fugas me faria perder tempo. — Eu pisquei, Kane pigarreou e eu continuei olhando pra ela enquanto ela se recompunha. — Não me julga amor, a cadela está se achando demais!
— Vai direto ao ponto, Sore. — pediu Kane.
— O idiota ruivo mandou bem num trabalho aí, e já que ele quer se redimir com você, me pediu pra liberar você até a sua preciosa filha. — Eu olhei pro Dom, ele me olhou um tanto feliz e depois eu voltei a olhar Sore enquanto ela se inclinava na mesa.
— Iron já sabe que eu…
— É claro que ele não sabe, sua idiota. O que você acha que eu ia fazer? Ligar pra ele e dizer que estou enviando a cadela favorita dele de volta? — Eu afinei os olhos, cruzei os braços e a olhei séria, sem me ofender com a língua afiada da loira chique. — Seu ex namorado ruivo deu uma dentro, e o meu namorado bonitão tem um coração menos peludo que o meu. Ele me castigou em não chupar mais as bolas grandes dele se eu não cedesse, ao menos isso aqui. — Ela mostrou os dedos uma quantidade mínima e eu olhei para trás, enquanto Kane dava de ombros, sem se importar com a insinuação da mulher.
— Sedendo por causa de cama? — perguntei com certa ironia.
— Cuidado com o seu sarcasmo queridinha, que a vida da sua filha está neste rolêzinho. Quem precisa da gente aqui é você, eu não. Por mim os dois tinham morrido segundo as regras da irmandade. — Ela fez uma pausa dramática — Mas como Iron nunca cogitou te ver, isso significa que você é uma vadia substituível. Se ele ainda continuar sensibilizado e não puxar o gatilho, eu puxo e falo pra minha sobrinha que ela tinha uma mãe muito inútil.
— Eu não tenho medo das suas ameaças, Sore.
— Devia ter. — Dom interveio, fez uma negativa quando eu olhei pra trás e andou em direção a porta. — Já fiz a minha parte pra me redimir, gracinha. Se vai enfiar sua oportunidade na bunda, podia ter me avisado, eu estava precisando da grana.
Ele bateu na porta, eu fiquei sem reação e Sore começou a rir.
— Parabéns cadela, no fim ficou sem nenhum! Ah… A vida é um presente inesperado mesmo.
— Eu quero ver a minha filha, Sore. E só. — respondi, engolindo aquela maldita risada.
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