- Ela matava animaizinhos de estimação quando criança?
Calissa arqueou a sobrancelha, confusa. Melody pegou a mão dela, levantando:
- Venha ver... Vou mostrar o cemitério.
- Cemitério?
- Medy... Não precisa... – Tentei contê-la.
Mas era tarde. Ela já estava com Calissa pela mão, levando-a por toda a casa até chegar ao quintal.
Enquanto ela falava sem parar com minha mãe, perguntei baixinho para Min-ji:
- O que é isso, afinal?
- Precisa ouvi-la, menina. Acho que já é hora. Sua mãe é uma boa pessoa.
- Eu não disse que não era... Mas ela não fez nada naquele dia. Foi omissa...
- Ela tentou ajudar do jeito dela. Você que negou. Não precisava ter sido assim. Por ela, a separação entre vocês duas nunca teria acontecido.
- E por que ela não veio antes?
- Ela tentou... Mas não achei que você estivesse pronta para o reencontro.
- Como assim, Min? Qual a diferença hoje?
- Você tem sua casa, que comprou sozinha. Está bem instalada com sua filha. Tem seu carro... Um bom trabalho. É independente e não precisa de ninguém. Você venceu, Sabrina Rockfeller. Sozinha.
- Não foi sozinha... Foi com sua ajuda. E de seus filhos.
- Não... Eles só foram o apoio. O resto você fez sozinha. Quando se tem vontade, tudo que precisa é de alguém que a impulsione para frente. Esta foi a função deles na sua vida.
Calissa veio correndo com Melody ainda grudada à sua mão e disse:
- Tem algo queimando no fogão... Mas não sei como desligar.
Saí correndo e desliguei a boca do fogão, com o leite derramado, cheirando fortemente a queimado.
- Mamãe... A gente não vai mais ter chocolate quente? – Melody me olhou.
- Eu faço outro depois, docinho. Não se preocupe.
- Você... Faz chocolate quente... Sozinha? – Calissa se impressionou.
- Sim. E depois vou limpar este fogão que ficou imprestável. – Falei, quase para mim mesma, lamentando o leite derramado.
- O que houve na sua perna? – Calissa ficou curiosa.
- Eu cai da escada. Mamãe tinha ido ver papai e tia Yuna ficou me cuidando. Mamãe sempre diz: “Medy, não corra na escada! Você vai cair!”
- E você não obedeceu. – Ela já imaginou.
- Não... Não obedeci. Então cai e quebrei um osso. Mamãe ficou nervosa e tia Yuna quase chorou. Mas ela é médica e me cuidou. Então não tinha quartos na ala da Pediatria. E nós ficamos no mesmo quarto do Gui. Eu acho que mamãe deveria namorar o Gui... Mas quando meu papai voltar, ela vai precisar deixá-lo. Gui é bem bonito. Minha mamãe disse que papai é mais. O Gui caiu de skate e machucou os braços... Porém ele não quebrou nenhum osso. Ele disse que somos uma boa dupla... – ela riu, balançando o corpinho, fazendo graça – Uma dupla de arteiros.
- Sim... Uma dupla de arteiros. – Calissa concordou.
- Se você é mãe da minha mamãe... Você é minha vovó?
Minha mãe não conteve as lágrimas e abaixou-se na altura dela, envolvendo-a num forte abraço:
- Pode dizer de novo?
- O quê?
- Pode repetir “vovó”?
- Eu posso... Vovó.
Melody a abraçou, sem que minha mãe pedisse. E aquilo de certa forma fez meu coração aquecer-se, ver as duas juntas, sangue do mesmo sangue. O passado de minha Medy tinha a ver com os Rockfeller, por mais que eu negasse meu próprio sobrenome.
- Min-ji... Você... Quer ver o nosso cemitério? – Olhei para ela, pedindo socorro.
Seria impossível falar com Calissa junto de Melody.
- Eu gostaria de conhecer o cemitério que há no quintal, Medy. Poderia me mostrar? – Pediu Min.
Melody soltou Calissa e aceitou, empolgada. Enquanto as duas iam em direção ao quintal, Melody disse:
- Você pode me dar colo? Eu cansei. Minha mamãe disse que este gesso pesa muito. Será que você consegue?
- Eu consigo. – Min garantiu, pegando-a no colo.
Olhei para Calissa. Estávamos frente a frente, depois de cinco anos. E minha filha, a qual meu pai exigiu que eu tirasse, estava ali, falando pelos cotovelos, tornando a vida mais alegre, leve e com sentido.
- Tiveram outro animal depois do hamster? – Perguntou-me.
- Não... Decidimos ficar só com Solitário II.
- Que bom! – Ela riu.
Eu comecei a rir, balançando a cabeça:
- Me saio bem com muitas coisas, mas não com os animais de estimação dela.
- Ela é linda... Perfeita... Cheia de vida.
- É o que eu tenho de mais precioso no mundo inteiro.
- Eu sei. Não houve um dia que eu não tenha chorado por você.
- Não houve um dia que eu não tenha agradecido a Deus pela minha coragem de ter partido em nome dela.
- Nem que seu pai lhe peça desculpas pelo resto da vida, será suficiente.
- E é intenção dele pedir?
- Muita coisa mudou.
- Imagino.
- E... – ela olhou ao redor – Você cresceu, meu amor. Não tem noção do quanto orgulho eu tenho de você. Isso tudo...
- Eu gostaria que você fosse mais direta, mamãe.
- Mamãe... – ela limpou novamente as lágrimas teimosas que começavam a borrar a maquiagem requintada e bem-feita – Não tem noção do quanto eu sonhei com esta palavra vindo novamente da sua boca, minha caçula.
- Eu... – Engoli em seco.
- Posso... Lhe dar um abraço? Por favor... – Ela abriu os braços.
Eu poderia dizer que não. Mas me pus no lugar dela. Se eu pedisse um abraço para minha Melody e não recebesse, seria a coisa mais triste da vida.
Dei um passo e a abracei. Inicialmente não nos tocamos muito. Nossos braços se enroscavam, mas os corpos não se moviam. Até que ela me apertou contra seu peito e deitei a cabeça, sentindo a pele quente e com cheiro que só ela tinha: cheiro de mãe.
Então foi como se todo meu corpo tivesse esperado cinco anos por aquele toque entre eu e ela. Senti as lágrimas escorrendo enquanto ela dizia, repetidas vezes:
- Eu amo você... Tanto, mas tanto...
Ficamos ali, alguns minutos, sem dizer nada, somente experimentando a sensação do reencontro. Depois de um tempo me afastei e limpei as lágrimas, perguntando:
- Mãe, o que você quer, depois de tanto tempo?
- Eu quero você... Junto conosco.
Eu ri:
- Só pode estar brincando.
- Não... Eu preciso de você... E da sua filha. Não posso passar mais um Natal com a família incompleta. Seu pai está doente...
- O que ele tem?
- A J.R Recording não vai bem... Ele está depressivo... E está difícil vencer esta doença.
- Eu fiquei depressiva quando ele me mandou embora, com uma filha no ventre, sem dinheiro, sem roupas, sem celular...
- Ele se culpa por isso.
- E por que não veio ele mesmo se desculpar? Por que a mandou no lugar dele? Faltou coragem?
- Ele não sabe que estou aqui.
- Então você está querendo reunir a família, sem ter certeza de que ele aceitaria minha presença?
- Eu não tenho duvidas de que ele aceitaria, Sabrina. Sinto sua falta... Ele sente... Sua irmã sente.
- Como ela está?
- Bem... Trabalhando bastante. Mas nem com todo esforço ela está conseguindo reerguer a empresa.
- Quer dizer que destruíram minha herança? – Debochei.
- Há alguns imóveis... E isso não sairá do nome de vocês, jamais.
- Jura? Achei que quando eu saísse de casa, estava abrindo mão de tudo...
- Sabe que não é assim.
- Mãe, não há chance de eu me unir a vocês.
- Sabrina... Por favor. Será Natal... Perdoe. Ou mesmo que não perdoe, nos dê o prazer de desfrutar da vivacidade e alegria da nossa neta. Passe as festas de final de ano conosco, na casa de praia da família.
- Eu quero! Quero ir à praia! – Melody falou, enquanto voltava apressada, caminhando com o gesso, sem muita dificuldade, como se tivesse nascido carregando aquele peso, tamanha habilidade que seguia em fazer tudo como sempre fez – Acha que o Papai Noel pode deixar meu presente lá? Ou será que fica muito longe?
- Papai Noel passa em todos os lugares e realiza todos os desejos. E o meu é passar o Natal com vocês duas. – Ela pegou minha mão e depois a de Melody.
Comentários
Os comentários dos leitores sobre o romance: Lembranças das noites quentes de verão