Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender,
viver ultrapassa qualquer entendimento.
Clarice Lispector
Estou no quarto já de pijama e sentada na cama com meus livros e caderno ao meu redor quando ouço alguém bater à porta. Antes que eu permita a entrada da pessoa, a porta é aberta e o meu primo Lucca invade o meu quarto. Respiro fundo na tentativa de buscar controle para ignorar qualquer que seja a sua tentativa de me tirar do sério.
— Posso entrar? — diz, fechando a porta atrás de si.
— Já entrou mesmo. — Dou de ombros.
Ele ri e pela primeira vez o seu sorriso é aprazível. Fico surpresa e feliz em ver que meu primo não é um cretino total, ele tem alma, como imaginei. Um sorriso satisfeito insiste em querer dominar os meus lábios, mas adoto uma postura dura fingindo não me afetar com a sua tentativa de paz.
— Pelo menos dessa vez foi educado ao bater à porta — digo, com seriedade ao arquear uma sobrancelha.
— Engraçadinha. Eu vou fingir que não ouvi. — Ele revira os olhos e caminha lentamente em minha direção enquanto seu olhar percorre atentamente pelo ambiente.
— Obrigada pela parte que me toca. — Dou um sorriso irônico. — Agora me diga o que você tem de tão importante para vir até aqui.
Ele para a alguns passos da cama e pousa o seu olhar sobre mim antes de respirar fundo. Descruzando os braços, ele coloca as mãos nos bolsos do seu moletom, visivelmente agitado.
— Você deve estar achando a minha vinda até aqui estranha.
Não digo nada, somente dou uma gargalhada irônica e arqueio as sobrancelhas para confirmar a sua teoria.
— Bom. Posso? — Com o dedo indicador, ele aponta a cama pedindo autorização para se sentar ao meu lado, então assinto em concordância. — Eu vim até aqui porque quero conversar com você, Julha, e que fique bem claro que não estou fazendo inspeção alguma. Eu apenas — ele volta a olhar para o ambiente com os olhos marejados. Lucca está emocionado? — Eu não sei você, mas entrar no seu quarto me traz boas recordações dos momentos que vivemos aqui. Tudo se perdeu, como uma flor que não teve os cuidados necessários e morreu. Pode não parecer, eu sei, mas sinto saudade daquele tempo. — Ele volta a me fitar com atenção.
Suas palavras me acertam como uma flecha e meu peito dói. Eu não confio em Lucca, tenho a impressão de que ele está aprontando alguma para cima de mim, mas não posso negar que as suas palavras me atingiram de maneira considerável. Talvez seja como eu pensei, ele não tão ruim assim.
— Que seja. Diga logo o que você quer, não tenho todo o tempo do mundo — digo em um tom duro.
— Claro, você tem uma vida bastante agitada — ele dá um sorriso irônico para me provocar.
Será esse o verdadeiro Lucca?
— Você veio aqui pra me provocar? Se essa é a sua intenção, parabéns, você conseguiu. Agora se puder sair. — Eu me levanto e caminho até a porta, abrindo-a em um convite para que ele se retire, mas ele simplesmente se aproxima e a fecha bruscamente.
— Qual é o seu problema, garota? Você não consegue conversar como uma pessoa civilizada? — ele diz, elevando o tom de sua voz antes de cerrar os dentes.
Eu não acredito que acabei de ouvir isso. Ele só pode estar brincando.
— Você é ridículo — bufo e volto a me sentar na cama.
— Eu sei que desde que você chegou aqui tenho me comportado como um idiota.
— Me comove o seu reconhecimento — provoco.
— Estou falando sério, Julha. Eu sei que tenho me comportado como um babaca e a nossa desavença descabida tem deixado a vovó incomodada. E eu também estou. Eu sei que você viverá aqui e acho que deveríamos nos dar bem, ou ao menos tentar. Nós somos primos e não devemos deixar que a briga dos nossos pais interfira em nosso relacionamento.
— Você quer dizer que a briga do seu pai com o meu, que nem está mais aqui para se defender — rebato. Minha voz soa mais irritada do que eu gostaria.
— Sim. Mas isso não diz respeito nem a mim e nem a você, e muito menos a minha irmã. Fomos forçados a estar dentro de uma guerra que nem mesmo sabemos por que começou. Não sei você, mas eu não quero fazer parte disso. — Ele volta a se sentar ao meu lado na cama.
— Você está querendo erguer a bandeira da paz? — pergunto com incredulidade.
— Isso mesmo, Julha. Não estou querendo dizer que seremos grandes amigos, mas podemos viver como duas pessoas normais dentro de um mesmo ambiente.
Consigo sentir a sinceridade em sua voz. Após alguns minutos, eu acabo cedendo, mesmo achando que o meu primo é um babaca declarado, ele não deixa de ter razão.
— Está bem. — Estendo a mão para ele para selarmos o nosso acordo, mas sou surpreendida quando ele me puxa para um abraço.
(...)
Acordo quando as cortinas das janelas do meu quarto são abertas. Incomodada, eu resmungo já sabendo quem é o visitante inconveniente.
— Carol, você é muito má — esbravejo antes de cobrir a cabeça com o edredom para que a luz solar que invade o meu quarto não incomode os meus olhos.
— Bom dia pra você também, Julinha. — Sua voz soa divertida.
— Eu adoraria acordar todos os dias com esse seu bom humor — digo ao mesmo tempo em que descubro a cabeça para olhar melhor para ela.
— Você é uma garota cheia de vida, mas é mais rabugenta que muitas pessoas que conheço.
Eu sorrio, porque sei que ela não deixa de ter razão. Após a minha vida ter dado um giro de trezentos e sessenta graus, eu tenho me tornado uma pessoa intolerante e, como diria o meu primo Lucca, insuportável de se conviver. Eles têm toda razão, há momentos em que nem eu mesma me suporto.
— Obrigada pela parte que me toca. — Eu me sento na cama e arrumo o meu cabelo, colocando uma mecha, que caiu sobre o meu rosto, atrás das orelhas.
— Não tem de quê, princesa — ela diz em um tom irônico.
Eu reviro os olhos, mas não posso deixar de esboçar um sorriso divertido ao vê-la me provocar. Observo Carol caminhar pelo quarto organizando meus livros na escrivaninha. Ela é uma bela morena com olhos castanho-escuros amendoados, cabelo longo e cacheado que agora está preso em um coque perfeito, um corpo escultural coberto pelo vestido cinza acima dos joelhos e com as mangas curtas. O seu uniforme ainda possui um avental branco amarrado em sua cintura e sapatos baixos brancos. Carol caminha para a porta e a abre, mas antes de sair ela se vira e diz:
— Eu já estava me esquecendo que tem uma surpresa esperando por você na sala de estar.
Eu franzo o cenho enquanto procuro em seu rosto algum vestígio do que seria a tal surpresa, mas ela nada diz, apenas me dá um sorriso simpático.
— O que ou quem é? — pergunto, mas ela já sumiu porta afora.
Sem obter resposta, rapidamente eu me levanto e calço as minhas pantufas ao mesmo tempo em que os meus pensamentos fervilham em minha cabeça. Sigo para o closet e depois para o banheiro, onde me preparo para encarar o dia que tenho pela frente.
Meu coração palpita de felicidade ao imaginar que a surpresa pode ser a minha mãe que deixou seu orgulho de lado e veio me pedir desculpas por tudo o que disse, afinal, ela estava com os nervos à flor da pele. Eu já deveria saber que palavras ditas no calor da emoção não devem ser levadas em conta. Mas então eu me dou conta que não estou falando de qualquer pessoa, e sim de Katherine Thompson. Uma mulher forte, decidida e orgulhosa demais para voltar atrás em suas palavras, mesmo que ela saiba que está errada. Pensar em mamãe deixa o meu coração apertado de tamanha angústia. Com as mãos apoiadas na pedra fria de mármore, eu deixo que lágrimas pesarosas deslizem pelo meu rosto. A mamãe me faz muita falta, mesmo que a maior parte do seu tempo tenha sido dedicada ao seu trabalho, eu sabia que em algum momento ela voltaria para casa e teria um pouco da sua atenção.
Respiro fundo e balanço a cabeça de um lado para outro, mandando para longe os pensamentos pertinentes.
Ótimo, linda, agora seque essas lágrimas e vá ao encontro da surpresa que está te aguardando, ordena o meu demônio interior.
Olho para a minha imagem através do espelho e assinto com a cabeça em concordância antes de seguir para a sala em passos lentos. Conforme eu me aproximo da sala, minha pulsação vai ficando acelerada e minha respiração se torna arfante. Quando estou no último degrau, eu paro e meu coração bate descompassado ao ver a vovó sentada no sofá da sala conversando animadamente com Lucca.
— Vovó — grito e corro em sua direção, que rapidamente vira o rosto para mim ao mesmo tempo em que se coloca de pé e estende os seus braços. — Eu estava com muitas saudades da senhora. — Eu a envolvo em meus braços num abraço apertado e afetuoso.
Eu amaria ver a minha mãe aqui, mas tenho que confessar que melhor surpresa que essa eu não teria. O seu perfume adocicado invade as minhas narinas e uma mistura de amor, proteção e carinho me acalma. Sentimentos que só agora que os tenho dedicados para mim que percebo o quanto me fizeram falta.
— Ah, minha querida, eu também senti muitas saudades de vocês — diz vovó, que estende uma de suas mãos na direção de Lucca, que a aceita e é puxado para o nosso abraço.
— A senhora fez muita falta para mim, vó — digo com sinceridade.
— Para nós — Lucca me corrige.
— Eu sei que sim, meus amores. — Ela se afasta um pouco e olha de mim para Lucca. — Fico feliz em saber que finalmente estão se entendendo — vovó declara com um largo sorriso de satisfação nos lábios.
— Eu também, vovó. Isso mostra que Lucca amadureceu em pouco tempo — eu o provoco em um tom brincalhão.
Comentários
Os comentários dos leitores sobre o romance: O Padrasto 1
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