O sol já havia se mostrado no horizonte em toda a sua plenitude
com sua beleza, força e imponência, trazendo a esperança
de um novo dia e uma nova oportunidade de ser feliz.
Julha Thompson
Com as mãos calejadas, Steve, meu acompanhante de viagem que vovó desnecessariamente me enviou, me acorda e diz que estamos chegando.
— Eu sou uma péssima companhia, não é mesmo, Steve? — Meu sorriso é uma linha fina nos lábios.
Encaro o homem que se manteve ao meu lado o tempo todo. Desde que eu me entendo por gente, Steve trabalha com a vovó. Ele sempre foi leal, escudeiro e companheiro dela. Sentado na poltrona ao lado, com um olhar carinhoso sobre mim, Steve diz:
— Você está cansada, menina Julha. Depois de alguns momentos conturbados é natural o corpo precisar de algumas horas de descanso.
Steve tem razão. Foram momentos conturbados, mas agora eu os deixarei para trás.
— Você está certo, Steve. — Olho através da janela do avião e vejo que já aterrissamos. O sol já havia se mostrado no horizonte em toda a sua plenitude com sua beleza, força e imponência, trazendo a esperança de um novo dia e uma nova oportunidade de ser feliz.
— Vamos?
Olho para cima e vejo o homem trajando o seu fino terno com uma postura suntuosa. Afetuoso, ele oferece sua mão e me encoraja ao perceber o medo que o novo causa em mim estampado nos meus olhos. Grata pela serenidade com que me tratou desde que nos encontramos, eu aceito a sua mão e sorrio.
— Vamos — digo, fingindo uma segurança que não possuo.
Eu me coloco ao seu lado e sigo pelo pequeno corredor atrás dos últimos passageiros. Ao passarmos pela tripulação, eu agradeço com um breve aceno de cabeça por terem conduzido a aeronave com segurança, nos proporcionando uma viagem tranquila.
— Por aqui, senhorita Thompson — diz Steve, enquanto me conduz pelo saguão do aeroporto.
Caminhamos em passos largos entre as pessoas que perambulam de um lado para o outro, correndo contra o tempo. Alguns com um pouco mais de pressa para não perderem o voo, enquanto outras somente aguardam amigos e parentes, repletos de saudade. Cada um em seu mundo, alheios ao que acontece à sua volta.
— Por favor, Steve, de chame de Julha — peço e ele acena em concordância.
Há muitos anos não piso em Vegas, e eu estaria mais feliz e aproveitaria bem a viagem caso tivesse vindo ao encontro da vovó em outras circunstâncias. Não que eu não esteja feliz agora, mas nada se compara a fazer algo planejado com a vida em paz. Neste momento, a minha vida está de todo jeito, menos em paz.
— Por aqui. — Steve me desperta do meu devaneio ao me indicar um corredor, e aos poucos vamos nos afastando da movimentação intensa que se concentra no centro do aeroporto.
Agora o ambiente está em silêncio total, consigo até mesmo ouvir o palpitar do meu coração. Assim que chegamos em frente a uma pequena porta com uma placa prata escrito “Funcionários”, deixando claro que a entrada é restrita, Steve a abre e entra. Fico sem entender para onde estamos indo, mas eu simplesmente o sigo, tenho certeza que ele sabe o que está fazendo.
Entramos em uma sala com grandes janelas em vidro que vão do chão ao teto, uma mesa de centro de cor escura com algumas revistas sobre ela e no canto da parede um abajur de piso. Percorro os olhos rapidamente pelo conjunto de sofá de dois e três lugares vermelho e vejo vovó acomodada nele, elegantemente vestida em um tailleur branco com alguns detalhes em preto. Seus olhos estão voltados para o aparelho celular que carrega em suas mãos. Um pouco mais a frente, em pé e com as costas voltadas para mim, encontro um homem de cabelo castanho-escuro com um corte baixo nas laterais e um pouco mais comprido na parte superior. Desço os olhos e vejo seus ombros largos e a postura firme em um terno de risca de giz feito sob medida, com uma mão no bolso da calça.
Quem será?
— Disse alguma coisa, senhorita Julha? — Steve volta a sua atenção para mim.
— Disse sim, Steve. Estou me perguntando como pude ficar tanto tempo longe dela. — Aponto a vovó com a cabeça, que com um largo sorriso nos lábios nota a nossa presença.
Ela se levanta e caminha em minha direção, então solto a minha bolsa no chão e corro ao seu encontro.
— Vó — minha voz soa embargada.
Ao nos aproximarmos, eu a envolvo em meus abraços em um forte abraço repleto de saudades.
— Minha querida, eu esperei tanto por esse momento. — Como eu, ela parece emocionada.
— Vovó, que saudade eu estava de você. — Após alguns minutos envolvida em seu carinho, eu me afasto do seu abraço e beijo o seu rosto antes de a abraçar novamente.
— Querida, você não imagina o quanto rezei para ver esse momento acontecer. — Os seus braços em volta da minha cintura trazem o conforto que tanto preciso. —Em alguns momentos a minha fé fraquejou e imaginei que não estaria viva para poder te abraçar novamente. Mas Deus não permitiria que isso acontecesse, e prova disso é que você está aqui, minha querida.
— Eu estou muito feliz de estar aqui, vó. Obrigada por me aceitar na sua casa. — Deito a cabeça em seu ombro, e vovó começa a me confortar ao passar a mão em minhas costas.
— Querida, não seja boba. Minha casa é a sua casa, assim como é dos seus primos — diz ao afastarmos.
Ela olha para o homem que ainda está de costas olhando através da janela, que ignora totalmente a nossa presença até vovó chamar a sua atenção. Não demora muito para ele se virar e seus olhos virem diretamente de encontro aos meus. Vejo um sorriso cínico dançar em seus lábios antes que uma carranca se forme em seu rosto. Ele me encara com seriedade na tentativa de me intimidar, mas mal sabe ele que estou pouco ligando para quem quer que ele seja. É nítido o desgosto que sente com a minha presença, e pelo que deixa transparecer, vovó não faz ideia que ele não está nada feliz com a minha ida para a sua casa.
— Lucca, não seja mal educado — vovó o adverte. — Cumprimente a sua prima.
Claro, como eu poderia ter me esquecido do meu primo Lucca. A palavra primo deixa um gosto amargo em minha boca, talvez pelo fato de não sermos próximos ou seja aquela coisa que muitas pessoas dizem simpatia à primeira vista. Ou também pode ser pelo mesmo motivo que o pai dele o manteve distante de mim e de minha família — ciúmes da vovó.
Mas eu não vou recuar, ele terá de mim o que me oferecer. Para que fique bem claro para ele que eu vim em paz, eu retribuo com um lindo sorriso. Mas ele que não mexa comigo, se quiser guerra é isso que terá.
Lembro-me de quando éramos pequenos e brigávamos pela atenção da vovó, que sempre soube dar atenção aos netos de maneira igual. O pouco que eu me recordo de Lucca é que ele sempre foi um garoto grosseiro, e pelo que vejo continua o mesmo.
Não me importo, ele vai ter que me aguentar. Lentamente, meu lindo sorriso se transforma em um cínico, deixando bem claro a minha repulsa pelo seu comportamento. Depois de tudo o que passei, ter que lidar com um homem que se comporta como um moleque idiota é demais para mim.
— Lucca...
— Está tudo bem, vovó — digo, para que ela se acalme antes de apertar a sua mão levemente para que se tranquilize.
Ela lança a ele um olhar reprovador e balança a cabeça.
— Ele é um bom garoto, vocês terão tempo suficiente para conversarem e se entenderem.
Não que eu não acredite nisso, mas prefiro me manter calada, então simplesmente aceno com a cabeça. Não quero que a vovó pense que eu vim morar com ela para causar problemas.
— Dona Iolanda. — Steve se aproxima empurrando o carrinho das bagagens.
Um homem baixo e forte com um grande bigode se aproxima e cumprimenta Steve com um aperto de mão e tapinhas nas costas, como bons e velhos amigos.
— Steve, como foi de viagem? — Vovó lhe oferece a mão em um cumprimento amistoso, que ele aceita.
— Ocorreu tudo bem, dona Iolanda. O voo foi tranquilo.
— Ótimo. Obrigada por ter trazido a minha neta em segurança. Agora já podemos ir. — Ela se vira para o outro homem, só então me dou conta de que ele é o motorista dela.
Nós nos dirigimos até o estacionamento do aeroporto onde a luxuosa limusine de vovó nos aguarda. Depois que o motorista guarda a minha bagagem, nós nos acomodamos no carro e seguimos viagem até a sua casa.
Abro a janela do carro e percorro os olhos pela cidade do pecado conhecida internacionalmente por suas festas e espetáculos. Os turistas que planejam passar as férias em Vegas viverão experiências incríveis nos melhores cassinos, hotéis, restaurantes, shoppings e, claro, melhores baladas do mundo. É realmente uma cidade fascinante.
— Vegas é tentadora, não é mesmo, querida? — Com seus olhos brilhando como duas pedras preciosas voltadas para mim, vovó chama a minha atenção.
— Sim, vovó, Vegas é realmente fascinante. — Volto a olhar as ruas movimentadas. — Eu não critico quem gosta de uma boa curtição, mas o meu foco aqui é outro. Eu vim para Vegas com o propósito de estudar e trabalhar, não pretendo desviar meus pensamentos para outro caminho.
— Concordo, minha querida, que tenha que se preocupar com o seu futuro, suas responsabilidades, mas não pode ficar presa somente a tarefas. Você é e cheia de vida, precisa também se divertir um pouco.
— Talvez eu encontre tempo para ir a um casino — brinco.
— Ou ir a uma dessas baladas que vocês, jovens, costumam frequentar e, quem sabe, conhecer um garoto de boa família e...
— Eu quero distância de namorados. Não, não estou disponível. — Balanço as mãos com um gesto de negação.
— Espera só você conhecer os garotos da cidade — vovó diz e caímos na risada.
Eu e ela seguimos todo o percurso até a sua casa em uma conversa animada e descontraída sob o olhar atento e inquiridor de Lucca, que se mantém calado. Pouco tempo depois chegamos à casa de vovó e assim que entro na sala, muitas recordações de papai vêm à minha mente. Lembro-me das vezes em que vínhamos em férias para cá, momentos maravilhosos em que íamos ao circo, jantávamos fora e depois de um dia repleto de diversão, eu me deitava em sua cama e ele lia para mim uma história. Bons tempos aqueles em que a minha única preocupação era me divertir.
Eu sei o quanto vovó sentiu a nossa falta, vejo através das dezenas de fotos nossas espalhadas por várias partes do cômodo da casa. Uma lágrima saudosa escorre pelo meu rosto com as lembranças de papai. Eu fico me perguntando se ele não tivesse partido tão cedo, como teria sido a minha vida nesse último ano. Eu teria tido divergências com mamãe? Eu estaria em Vegas neste momento? São perguntas sem respostas, mas que me lembram que deixei a minha mãe decepcionada em Nova Iorque. Espero que algum dia ela possa me perdoar, pois mesmo depois das suas duras palavras, eu sei que ela me ama como eu a amo. Amo com toda a minha alma.
Se ao menos ela e vovó não nutrissem tanto ódio uma pela outra, talvez mamãe não tivesse ficado tão decepcionada comigo. Talvez até visse a minha decisão com outros olhos e me apoiaria, mas claro que a vida não coopera comigo. Nunca que as coisas seriam mais fáceis para mim. Algumas pessoas dizem que tiramos das dificuldades algum aprendizado, espero realmente que isso aconteça comigo. Eu não entendo por que elas se odeiam tanto, talvez um dia a vovó me diga, pois a mamãe sempre ficou irritada quando eu tocava no assunto e acabava me convencendo que era conversa para adultos.
— Em que está pensando? — Ouço a voz da vovó se aproximando.
Eu me viro para ela e me afasto um pouco para que ela se coloque ao meu lado.
— O quanto senti saudades da sua casa, da senhora. Só agora me dou conta do quanto fui feliz aqui. — Lágrimas voltam a embaçar os meus olhos.
— Eu também, querida. Eu senti muitas saudades de você e do seu pai. — Ela se aproxima e envolve seu braço em minha cintura, então deito a cabeça em seu ombro em busca de conforto. — Todas as noites eu fico pensando no tempo em que essa casa era cheia de vida com a presença de todos vocês. Às vezes, eu me pergunto quando tudo isso se perdeu, quando eu perdi a minha família.
Suas palavras fazem com que eu me sinta ainda mais culpada.
— Perdoe-me, vovó, por permitir que me afastassem de você todo esse tempo.
— Não se sinta culpada, minha querida, todos temos que passar por provações para nos tornarmos pessoas melhores. E ficar distante de vocês foi a minha provação, mas agora o que importa é que estão aqui comigo. Como eu sempre sonhei.
Ergo a cabeça e sorrio ao ver o seu rosto iluminado pelo sorriso contente que carrega em seus lábios. Eu me aproximo dela e deposito um beijo carinhoso.
— A senhora é maravilhosa, vovó. — Envolvo os meus braços em sua cintura em um gesto afetuoso.
— Agora vamos até o seu novo quarto, você deve estar exausta. Tenho certeza que quer tomar um banho quente e descansar um pouco. Vou pedir para prepararem algo para você comer enquanto se instala. — Ela leva a mão ao meu rosto e acaricia. — Depois podemos conversar e, se você quiser, pode me contar como tudo aconteceu.
Eu não pretendo fazer isso agora, o que mais quero é trancar esse assunto dentro de uma caixinha imaginária e jogá-la no fundo do poço. Decido contar o que aconteceu só quando não me ferir mais, mas caso ela insista eu direi, devo isso a ela.
— Está bem, vovó. Obrigada.
Entro no meu novo quarto, não tão novo assim, com a vovó me seguindo. Recordações da minha infância passam em minha mente como um filme. Estupefata, eu percorro os olhos pelo ambiente e cambaleio em minhas pernas trêmulas antes de vovó se colocar ao meu lado para me amparar.
— Querida, você está bem? — Sua voz parece aflita.
— Sim, eu estou bem — minto, tranquilizando-a. Fico surpresa ao encontrar o meu quarto exatamente do mesmo jeito de anos atrás. Está perfeitamente conservado e a decoração em nada mudou. Continua lindo. — Vovó, eu não sei o que dizer, está tudo como eu me lembro. — Emocionada, volto a minha atenção para ela.
— É loucura, querida, eu sei. Mas foi a maneira que eu encontrei para manter você e o seu pai um pouco mais perto — diz com os olhos marejados.
— Eu não estou te julgando por isso, vó. — Eu me viro e seguro suas mãos, dando um leve aperto. — Eu apenas fiquei surpresa, não esperava. — Dou de ombros.
Comentários
Os comentários dos leitores sobre o romance: O Padrasto 1
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