Marta acorda com o corpo moído, como se tivesse apanhado da vida por dentro e por fora. Cada músculo dói, mas nada se compara ao que arde por dentro, a alma em frangalhos, em pedaços tão pequenos que ela sequer sabe por onde começar a juntar.
O quarto do hotel é simples, limpo, sem luxo algum, mas com dignidade. O travesseiro ainda tem o cheiro do sabão barato dos lençóis, e isso de alguma forma a acolhe. Um cheiro que não pertence a ninguém além dela mesma. Pela primeira vez em muito tempo, está sozinha, completamente sozinha e, paradoxalmente, isso a fere e a liberta.
Ela se senta na beira da cama. Encarar o chão já exige esforço. Encarar o dia, então, parece um desafio imenso. No canto do quarto, a mala ainda meio aberta guarda as roupas. Uma parte dela quer deitar de novo, fechar os olhos e sumir do mundo. Dormir por dias, semanas, meses. Desaparecer até não sentir mais nada.
Mas ela não vai.
Ela respira fundo. Fecha os olhos. Uma. Duas. Três vezes.
Não dessa vez.
Com lentidão, levanta-se. Vai até o espelho que cobre a porta do guarda-roupa e encara o próprio reflexo.
Os olhos ainda estão inchados. As olheiras denunciam noites sem dormir, dias de choro. E ali, no pescoço, as marcas... marcas que não são apenas físicas. São cicatrizes da alma. Não falam só de dor, falam de confiança quebrada, de amor desfigurado, de algo que nasceu lindo e foi corrompido por alguém que ela amou com toda a força que tinha.
Ela toca levemente a pele, onde o roxo já começa a esverdear. Não como vítima, mas como testemunha. Ela viu quem ele era. E agora vê quem ela se tornou depois de sobreviver.
Veste uma blusa de gola alta. Preta. Sóbria. Invisível.
Amarra os cabelos em um coque alto, como fazia nos dias que queria parecer firme, ainda que estivesse em pedaços por dentro. Coloca os óculos escuros. Um escudo. Não quer que ninguém veja os olhos dela hoje. Não quer que ninguém veja o terremoto que ainda balança tudo por dentro.
Pouco tempo depois, está em um shopping. O lugar fervilha de gente, mas ela caminha como um fantasma entre os corredores. A expressão no rosto é decidida. Não há espaço para hesitação agora. Ela entra em uma loja de operadora. A atendente pergunta se ela quer manter o número.
— Não. Quero um novo. DDD 016. Estou... me mudando para aquela região. — diz, com uma voz firme, mas o coração pulando como uma criança assustada.
Enquanto preenche os papéis, as mãos ainda tremem. Mas ela respira fundo, segura a caneta com mais força. Vai ser diferente agora. Precisa ser.
Antes de jogar fora o chip antigo, porém, há uma última coisa a fazer.
Ela abre o Whats App, pela última vez. Os dedos hesitam sobre a tela. Tantas mensagens não respondidas, tanta coisa que ficou no ar... mas só uma pessoa merece uma despedida. Só uma pessoa acompanhou a sua dor, sem invadir. Só uma pessoa foi farol no meio da tempestade.
Eduardo.
Ela respira. E escreve. Cada palavra como se fosse parte de uma carta de adeus, mas não definitiva. Uma carta de amor fraterno, de gratidão profunda. E de promessa.
Mensagem para Eduardo:
“Edu...
Não sei por onde começar. Talvez nem exista jeito certo de começar a dizer adeus, mesmo que seja só por um tempo. Você foi o melhor presente em meio ao caos que vivi. Quando tudo desabou, foi você quem segurou as pontas que eu mesma já tinha deixado cair. Você me escutou, me respeitou, me protegeu, mesmo quando eu estava completamente destruída por dentro.
Você foi o ombro, o silêncio seguro, o amigo que nunca pediu nada em troca. Quando eu não tinha mais onde ficar, você não hesitou. Me deu a chave da sua casa, e eu nunca vou esquecer disso. Foi o gesto mais sincero de confiança, carinho e respeito que recebi em muito tempo. Talvez na vida.
Saiba que você foi a melhor parte de tudo isso. Mesmo com tudo dando errado... ter te conhecido foi o que deu sentido à minha fuga. À minha dor. Obrigada por existir, Eduardo.
Um dia, quando menos esperar, apareço com café e uma tapioca, como sempre. Mas, por agora, preciso desaparecer. Meu número vai sair do ar. E quero que saiba: obrigada. Por tudo. Te amo como meu irmão. Cuida de você." 🖤
Ela apaga todas as mensagens, exclui o Whats App, e sai dali com um novo número. Nova identidade. Novo começo.
No caminho, para na faculdade. Quer trancar a matrícula, mas a atendente, gentil, a informa sobre a modalidade EAD.
— “Você pode continuar o curso à distância, temos polos espalhados… inclusive na região que você mencionou.”
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