O céu se rompe com um estrondo seco, como se algo no alto tivesse se partido em duas metades. Um instante depois, a tempestade explode sem piedade. A água não cai, despenca com violência desgovernada, como se o próprio céu tivesse sido rasgado em desespero. O vento uiva entre as árvores, vergando galhos centenários e lançando telhas, folhas e destroços pelos ares. As nuvens, densas e baixas, parecem engolir a cidade, mergulhando tudo em um crepúsculo apocalíptico no meio da tarde.
Em questão de minutos, a cidade mais próxima ao sítio mergulha no caos. As ruas se transformam em rios barrentos, arrastando carros inteiros, pedaços de muros, móveis, árvores tombadas, e, mais aterrador ainda, gente. Gente que tenta correr. Gente que tenta salvar crianças nos braços. Gente que grita por socorro enquanto a água sobe até o peito, até o pescoço. Em bairros inteiros, a energia elétrica some, transformando a noite em algo prematuro e absoluto. Um transformador na avenida central explode, deixando o céu riscado por faíscas azuis e um estrondo que faz as janelas tremerem a quilômetros de distância. Os hospitais ficam à meia luz, geradores falhando sob a pressão. A sirene da Defesa Civil não para de tocar. Os abrigos improvisados lotam em horas.
Do alto da colina, o sítio observa tudo. Sólido. Silencioso. Uma ilha cercada pelo caos. A casa de alvenaria resiste firme, protegida por um relevo mais alto e uma estrutura construída para aguentar o imprevisto. Os galpões brancos brilham entre os relâmpagos como faróis distantes.
Marta está na varanda, coberta por uma manta de lã grossa, observando o céu escuro como carvão. Os olhos não piscam diante dos relâmpagos. Ela segura a barriga com uma das mãos, sentindo os pequenos movimentos dos bebês como um lembrete de que há vida ali, vida que depende dela. A outra mão segura firme a caneca de chá que Miguel acaba de trazer.
— Mais uma noite sem luz na cidade — diz ele, ofegante, com a roupa encharcada.
— O rádio acabou de confirmar. Transformador da central pifou. Centro e zona sul no escuro total.
— A prefeitura já declarou estado de alerta?
— Sim. E mais: mais de trezentas pessoas estão fora de casa. Um bairro inteiro desmoronou. Deslizamento. Ainda tem desaparecidos. Abrigos improvisados não estão dando conta. Estão pedindo ajuda, qualquer ajuda. Até a escola estadual está com teto comprometido.
Marta fecha os olhos por um instante. O som da chuva batendo no telhado parece uma marcha de guerra.
— E aqui?
— Aqui estamos bem. O sistema de energia independente está firme, os reservatórios estão em níveis seguros e o gerador está com combustível para seis dias, caso a energia solar tenha algum imprevisto. Os nossos galpões não alagam. Estamos entre os poucos que conseguiram se manter de pé.
Ela respira fundo. Toda a estrutura que construiu, as decisões caras, a teimosia em ser autossuficiente, agora fazem sentido. Ela sabe que não pode se deixar abalar, mesmo com o cansaço acumulado e a gravidez avançada pesando a cada passo.
— E os desabrigados?
— Mais de quinhentas pessoas só na cidade. Crianças, idosos. Famílias perderam tudo. O mercado do Seu Alfredo virou um aquário. A padaria do Ruan? Submersa até a altura das portas. O posto de saúde do bairro Santa Luzia foi evacuado. Um abrigo improvisado na quadra da escola estadual está recebendo gente, mas estão sem água potável.
Marta engole em seco.
— Vamos separar mantimentos, roupas, cobertores. As fraldas que comprei podem ajudar alguém agora.
— Já vou avisar a nossa mãe. Amanhã cedo levamos tudo.
Relâmpagos ainda cortam o céu, e o trovão que se segue parece partir o mundo em dois. Mesmo assim, Marta se levanta devagar. Seus passos são firmes, ainda que pesados. Ela caminha até o painel de controle da central elétrica e confere os indicadores com atenção de engenheira. Tudo está funcionando. Tudo resiste. Mas a cidade abaixo... não.
Na cozinha, dona Maria prepara sopa para todos, silenciosa, como se cozinhar fosse sua oração pela paz. Seu Heitor revisa o gerador mais uma vez, embora já o tenha testado cinco vezes só naquela noite. A família inteira vigia o sítio com os olhos de quem sabe que o mundo lá fora já não é o mesmo.
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