O sol desponta com força, rompendo as nuvens como se quisesse apagar os vestígios da tragédia da noite anterior. Mas a cidade não esquece tão fácil. A luz quente do novo dia apenas revela, com mais clareza, os rastros do caos, o barro que escorre pelas calçadas, os móveis empilhados nas calçadas, os rostos abatidos dos moradores, todos unidos por uma mesma pergunta silenciosa: e agora?
Marta desce da caminhonete com lentidão e firmeza. O ventre saliente parece pesar mais sob o calor sufocante, mas ela mantém o queixo erguido. Seu olhar é determinado, embora a noite mal dormida pese nas olheiras escuras e no leve tremor das mãos. Miguel contorna o carro, abrindo a carroceria com um estalo metálico. Ele retira uma caixa volumosa repleta de mantimentos, roupas infantis e fraldas.
— Me dá essa, eu levo — Marta diz, estendendo os braços, mas ele nega com um aceno.
— Nem pensar. Com esse barrigão, você já tá fazendo mais do que devia. Espera ali na sombra, vai.
— Eu disse que vou ajudar, Miguel. Não vim até aqui para ficar assistindo. E... — ela respira fundo — quero ver com os meus próprios olhos. Sentir esse lugar. Saber o que mais precisam. A gente pode montar outra remessa até amanhã se for necessário.
Ele não responde, apenas se curva um pouco mais sobre as caixas e começa a empilhá-las sobre um carrinho improvisado. Marta ajeita a máscara no rosto e segue ao lado dele até a entrada do ginásio, transformado às pressas em abrigo. O cheiro é uma mistura desconfortável: produtos de limpeza intensos, suor, colchões úmidos, restos de água estagnada. Crianças correm entre colchonetes, mães distribuem alimentos com as mãos trêmulas, voluntários trocam palavras rápidas, muitas vezes entrecortadas pela urgência.
— Trouxemos doações do Sítio Maia — anuncia Marta a uma das mulheres de colete amarelo fluorescente, que anota os itens com expressão exausta.
— Ah, graças a Deus. Vocês são do sítio da colina, não é? Já tinham ajudado no início da pandemia. Bem vindos de novo — diz a mulher, sorrindo com gratidão genuína. — Essas fraldas vão fazer uma diferença absurda. Temos três mães com bebês recém-nascidos aqui. Só ontem chegou mais uma com o neném enrolado em pano de prato.
Marta sorri de leve, mas seu olhar é puxado para o fundo do ginásio como se algo, ou alguém a atraísse por fios invisíveis. Ela pisca. Uma mulher de postura impecável conversa com um homem engravatado. Alta, magra, cabelos presos num coque impecável, salto fino sobre o piso de cimento como se estivesse numa passarela. A roupa clara, sem uma única mancha, contrasta violentamente com o cenário de improviso ao redor.
A garganta de Marta seca num segundo.
Cassandra?
O nome ecoa em sua mente como um trovão silencioso. O mesmo nome que ela evitou pronunciar por meses. A mulher vira um pouco o rosto, e mesmo sem ver completamente seu perfil, Marta sente o coração disparar. É o mesmo nariz esguio, os mesmos ombros rígidos, a aura de autoridade glacial que nenhum desastre parece abalar.
Ela dá um passo para trás, instintivamente. O chão parece inclinar levemente sob seus pés. Miguel percebe.
— Tá pálida. Quer sentar?
— Não. Não... não é nada. Eu só... achei que reconheci uma pessoa. Mas... deve ser engano.
Ele franze a testa.
— Quer sair um pouco?
— Só mais um minuto. Quero entregar tudo antes.
Ela se afasta, fingindo verificar o empilhamento das doações, mas sua atenção está voltada apenas para a mulher elegante, que agora faz gestos com as mãos enquanto fala com os responsáveis pela triagem. Marta tenta se esconder atrás de uma pilha de caixas, mas a tensão cresce em ondas. Cada detalhe da presença daquela mulher parece irreal: o salto alto em meio ao caos, o blazer engomado, a elegância gélida, como se nada ao redor fosse digno de sujá-la.
Será que era mesmo ela? A ex-diretora de RH do Grupo Schneider? Aquela que sempre a observava como se fosse um erro ambulante?
Marta se recorda das reuniões silenciosas, dos olhares calculados, das frases ditas com doçura e veneno.
Cassandra a atacou diretamente — era mais cruel do que se poderia imaginar. Sabia atingir com classe. E agora... agora estava ali. Na cidade arruinada pela tempestade. Por quê?
Um dos voluntários passa apressado e comenta com outro:
— A dona Cassandra já autorizou que a triagem seja feita direto no depósito. Ela avisou que volta pra São Paulo amanhã, mas hoje vai passar o dia com a equipe daqui. Parece que conhecia o prefeito.
Marta sente um arrepio subir pelas costas, frio como metal molhado.
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