O céu ainda exibe restos da tormenta que assolou a cidade na noite anterior, nuvens esparsas e pesadas pairam sobre o horizonte, como se observassem em silêncio os estragos deixados pela chuva. A manhã é abafada, pegajosa, com aquele calor úmido que gruda na pele e irrita. Marta, apesar disso, segue o seu dia. Está grávida de oito meses, e cada passo exige controle, paciência. Mas ela é teimosa. Sempre foi. E teimosia, hoje, é o que a move.
Veste uma jardineira jeans confortável sobre uma camisa de algodão branca. Os cabelos presos num coque simples, botas leves nos pés inchados. A barriga enorme, redonda como a lua cheia, avança à frente do corpo como um aviso. Ela dirige a RAM 3500 devagar pelas ruas molhadas, desviando de buracos recém-abertos pela enxurrada, observando as máquinas da prefeitura ainda trabalhando nas sarjetas destruídas.
Passa primeiro na agropecuária para buscar os insumos da semana. Dois funcionários uniformizados carregam caixas para a carroceria com eficiência. Ela agradece com um aceno, se despede e segue o seu caminho, ligando o rádio para abafar o silêncio estranho que toma conta do interior da caminhonete. As notícias são todas sobre os desabrigados, os deslizamentos, a mobilização solidária. Tudo muito previsível. Mas a inquietação em seu peito não combina com a música esperançosa que começa a tocar.
Seu destino é a prefeitura. Precisa entregar um documento exigido pela vigilância sanitária — uma papelada simples, mas necessária para regularizar o alvará rural antes da viagem. No entanto, ao se aproximar do centro, percebe que tudo está congestionado. Carros demais. Gente demais. Vagas de menos.
— Ótimo — resmunga, já irritada.
Dá a volta no quarteirão, tenta a sorte mais duas vezes, mas não encontra lugar. Decide estacionar mais longe, perto da praça principal. Deixa o carro na sombra de uma figueira antiga, desce com esforço, ajeita a máscara no rosto, e segue a pé, sentindo o peso da gravidez e da cidade.
Pelo caminho, conhecidos a cumprimentam. Uma senhora pergunta dos bebês, um rapaz elogia a ajuda que o sítio tem dado aos desabrigados. Marta sorri, agradece com educação, mas a mente está longe. Seus olhos vasculham tudo, em alerta. E então... sente.
O arrepio começa na nuca, como um toque gelado de advertência. Um calafrio real, físico, percorrendo a espinha como se alguém soprasse seu nome bem de perto. Ela para. Olha para os lados. Nada. Tudo parece absolutamente normal.
Mas ela conhece aquela sensação.
Instinto.
E ele nunca falha.
Quando chega à calçada em frente à prefeitura, respira fundo. Está quase entrando quando ouve:
— Marta.
A voz é suave, como um veneno que escorre devagar. Aveludada, quase gentil. Quase.
Ela se vira devagar, como se algo dentro dela já soubesse o que encontraria. E acerta.
Cassandra.
Ali está ela. Como um fantasma que se recusa a morrer. Impecável. Blazer bege sobre uma blusa branca, cabelo preso num coque milimetricamente alinhado, maquiagem discreta, mas precisa. Um perfume caro paira no ar, misturado ao cheiro de terra molhada.
— Que coincidência maravilhosa — diz Cassandra, sorrindo com os lábios, mas não com os olhos. — O interior tem seus encantos, não é?
— Depende do que se está procurando — responde Marta, sem disfarçar a frieza.
Os olhos de Cassandra percorrem o corpo de Marta, parando na barriga enorme que a jardineira não consegue esconder. O brilho que surge em seu olhar não é de surpresa, tampouco de felicidade. É prazer puro. Um prazer envenenado.
— Uau. — Ela dá um pequeno passo adiante, como se examinasse um artefato raro.
— Que novidade deliciosa. Gêmeos, não é?
Marta aperta o punho dentro do bolso. Não havia dito nada. Ninguém ali tinha. E ainda assim... Cassandra sabia.
— Está se superando, Marta. Sempre achei que você fosse só uma distração passageira, mas... olha só. Conseguiu gerar dois herdeiros de uma vez. Que fertilidade invejável.
— O que você quer? — Marta pergunta, firme, tentando não demonstrar o desconforto.
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