O cheiro de ração, serragem e desinfetante se mistura ao silêncio pesado que só os galpões vazios conhecem. É o fim do vazio sanitário, mas o começo de algo que ninguém ali pode prever. Miguel caminha entre as estruturas metálicas com o olhar atento de quem carrega nos ombros muito mais do que planilhas. Em suas mãos, o caderno já surrado com anotações rigorosas e datas riscadas a lápis, porque ali, nada é definitivo. Nem mesmo a paz.
Ele confere bebedouros, temperatura ambiente, a altura exata das lâmpadas que aquecerão os pintinhos ao chegar. Sessenta mil vidas minúsculas a caminho, cada uma delas esperando que tudo esteja perfeito. E está. Porque Miguel faz questão de garantir.
Mas por dentro, ele mesmo está longe disso.
Já em casa, o cheiro de café fresco o recebe junto com o som das novelas antigas que Dona Maria insiste em assistir. Ela sorri ao vê-lo, mas Miguel hesita. Senta à mesa com a postura de quem quer descansar o corpo, mas não consegue calar a mente.
— Mãe... — começa, sem saber onde termina.
— Eu não consigo parar de pensar neles. Nas crianças. Eu fiz planos, sabia? Tantos...
— Eu sei, meu filho — ela diz, com os olhos baixos, mexendo a colher na xícara como quem busca respostas no fundo do café.
— E se a Marta não aguentar quando entender tudo? Quando cair a ficha de verdade sobre o Jeff? Eu sinto... medo.
— A gente só pode pedir a Deus. E eu já pedi, todos os dias. Que Ele proteja o Jeff, onde quer que ele esteja.
Miguel fecha os olhos por um instante. As mãos calejadas apertam o caderno contra o peito. Por fora, ele é força. Por dentro, um emaranhado de incertezas.
Enquanto isso, a maternidade vibra em outro ritmo.
Jonathan já está no quarto, ajeitando os travesseiros, limpando as mãos com álcool em gel pela terceira vez, repassando mentalmente tudo o que leu sobre cuidados com recém nascidos. Lua dorme no bercinho ao lado, um pacotinho rosado envolto em um cobertor de bichinhos.
A porta se abre. Marta entra devagar.
Os olhos dela estão fundos, tristes. O sumiço de Jeff ainda é um buraco aberto em seu peito. Mas quando seus olhos pousam sobre Lua, algo muda. Os ombros relaxam. A dor se mistura com ternura, e um sorriso, ainda que tímido, se desenha.
— Boa tarde, Marta — diz a enfermeira obstetra, com voz suave.
— Eu sou Carolina, estou assumindo o plantão agora. Vamos só conferir como você está, tudo bem?
Marta apenas acena, senta-se devagar na poltrona e começa a ser examinada.
— Pressão ótima... curativo limpo... algum histórico de alergia? Alimentar ou a medicamentos?
— Não... está tudo bem. — Ela hesita. — Quer dizer, na verdade... eu só quero... pegar a minha filha logo.
Carolina sorri compreensiva, terminando as anotações no prontuário.
— Já vamos liberar. Ela está perfeita. Você vai ver.
A enfermeira da UTI faz a passagem do plantão, e juntas ajudam Marta a se acomodar melhor. Minutos depois, os braços de Marta envolvem Lua mais uma vez. E o mundo inteiro parece caber naquele abraço.
Jonathan se aproxima, emocionado.
— Ela tem os seus olhos, Marta...
Marta sorri, as lágrimas escorrendo livres. É um momento raro. Íntimo. Vivo.
Marta estende os braços com urgência contida. Jonathan se levanta e, em silêncio reverente, ajuda a posicionar Lua no colo da mãe.
O mundo parece parar.
Lua aninha-se no peito de Marta como se já reconhecesse aquele coração. Os olhos da bebê piscam devagar, embriagados de aconchego, enquanto Marta afaga os cabelos finos e escuros com um carinho que não se ensaia, apenas acontece.
Jonathan, de pé ao lado da cama, observa tudo com os olhos marejados. Ele se inclina devagar, deposita um beijo na testa de Marta e depois na cabecinha da filha. Envolve ambas com os braços, num abraço que diz tudo sem som algum.
— Obrigado por me dar esse presente... — ele murmura. — Obrigado por aguentar tudo até aqui.
Marta encosta a testa na dele.
— Ela vale tudo. Até a dor.
— Eu vou estar com vocês. Sempre — ele promete, apertando-as com firmeza.
— Eu não sei como lidar com tudo que tá acontecendo... com o Jeff, com o que ainda vem pela frente. Mas eu sei cuidar de vocês. E isso eu vou fazer até o fim.
Eles ficam assim por longos minutos, como se o tempo resolvesse parar para respeitar aquele instante.
Mas mesmo enquanto o amor transborda no quarto, paira no ar uma presença sutil... algo que se esconde nas entrelinhas, nas dúvidas não respondidas, nos medos não ditos.
Será que o destino permitirá que essa paz dure?

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