O relógio marca algum horário indefinido no meio da madrugada quando Marta abre os olhos, mas algo em seu peito já estava desperto antes do ponteiro mudar de lugar. É como se a alma chamasse, baixinho, firme, dizendo: é agora. O corpo pesa, o coração mais ainda, mas ela sabe. É hoje. É nessa madrugada quieta, sem testemunhas, que ela vai se despedir de tudo o que construiu com o suor, os sonhos e a coragem. O sítio dorme, mas Marta não consegue mais. Porque antes de ir, ela precisa lembrar. Precisa sentir. Precisa se despedir.
Levanta devagar, os pés descalços tocando o chão frio do quarto. Jonathan dorme, os braços jogados para o lado, o rosto sereno. No bercinho, Lua está enroladinha como um presente, os lábios entreabertos, o peitinho subindo e descendo num compasso doce. Marta sorri entre a dor. Aproxima-se, ajeita com carinho a manta da filha, beija de leve a testa dela e fecha os olhos por um instante.
— Você é o meu maior motivo — sussurra, a voz embargada.
Sem fazer barulho, abre a porta. O rangido é mínimo, mas em seu peito parece um trovão. Cruza o limiar da casa devagar, como quem atravessa uma linha invisível entre o que foi e o que está prestes a deixar de ser. O alpendre está frio, o sereno cobre a madeira e faz o ar parecer mais denso. Marta caminha como quem carrega o mundo nos ombros. E, de certo modo, carrega.
Passa pela frente da casa, olha para o céu coalhado de estrelas e respira fundo. Cada passo parece doer, mas ela segue. Chega à garagem. Os tratores dormem em silêncio. Imóveis. Fiéis. Ali, ela para. As lembranças começam a vir, uma a uma, como ondas quebrando no peito.
Vê-se meses antes, indo até a cidade vizinha. A conversa ao acaso, num restaurante simples, três homens comentando sobre os galpões, sobre produtividade e futuro, o fazendeiro, o veterinário e o agrônomo. Aquilo acendeu uma faísca. E quando começou a pesquisa a fundo e buscou nos módulos da faculdade, encontrou tudo aquilo que precisava. O projeto nasceu ali. E cresceu com cada conversa, cada planta no papel, cada dúvida sanada entre um café e outro por telefone.
O galpão número 01 surge à sua frente. Ela para. O peito aperta.
— Aqui tudo começou…
A memória vem forte: o primeiro lote de pintinhos chegando, frágeis, amarelinhos, empoleirados uns sobre os outros. A alegria nos olhos do pai, a curiosidade do irmão, a leveza de Darlene. O choro de Dona Maria no dia em que viu o primeiro caminhão saindo com os frangos terminados, com o galpão limpo e vazio, outra etapa no aprendizado e logo tudo estava pronto para recomeçar. A risada alta ao conhecer a querida "vassoura de fogo" da Dra. Estela. Tudo pulsando. Tudo vivo.
Ela caminha entre os galpões, um a um. Cada estrutura carrega suor, esperança, cuidado. Cada prego, um pedaço de si.
No galpão 06, ela para de novo. Imenso. Imponente. Um desafio ousado que enfrentaram juntos: cem mil aves. Cem mil vidas sob a sua responsabilidade. O controle de temperatura. As vacinas. As planilhas de manejo que antes pareciam impossíveis. E agora? Agora eram rotina. A família aprendeu, se dedicou, se superou.
E Dra. Estela… Ela partiu feliz. Dissera que aquele lugar tinha deixado de ser apenas um projeto para se tornar uma referência e também casa de amigos. Uma casa cheia de amor. Um exemplo. Marta enxuga uma lágrima que escapa. O peito arde. Mas ela sorri.
— Conseguimos, doutora… a senhora tinha razão. A gente conseguiu.
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