Cassandra Reimann acorda em um corpo que já não reconhece. O reflexo deformado na janela do apartamento emprestado devolve a ela uma verdade que dói mais do que qualquer queimadura, ela está reduzida a uma sobra, um espectro de quem já foi. Ontem mesmo, dormia encolhida sob a marquise gelada de uma loja fechada, espantando ratos com os pés, rezando para que o frio da noite não a matasse antes da manhã. Hoje, ao menos, tem um teto. Não é seu, não é conquistado, mas é algo. E, depois da humilhação pública e das gargalhadas cruéis que a seguiram quando foi confundida com um monstro à solta, a sensação de estar entre quatro paredes seguras é quase um bálsamo.
Ela lembra-se da cena como uma punhalada, os homens bêbados que tentaram agarrá-la na rua. O hálito podre de cachaça, a risada grosseira, a intenção clara. Por um instante, acreditou que seria violentada ali mesmo, que além da feiura e da miséria, ainda carregaria o peso desse abuso. Mas bastou um deles encostar na pele queimada de seu rosto para recuar horrorizado, cuspindo no chão e gritando como se tivesse tocado numa praga. “Eu não tenho coragem de meter o meu pau numa desgraça dessa!”, um deles berrou, antes de correr em disparada, seguido pelos outros dois. O riso deles ainda ecoa nos ouvidos dela, mais doído que o frio da madrugada.
Agora, na quietude do apartamento de Márcio Figueiredo, empresário conhecido de tempos passados, Cassandra respira fundo. O silêncio parece até falso, como se fosse emprestado, e a cada segundo ela teme que alguém vá arrancá-lo dela.
Ainda de chinelo gasto e com o moletom encardido que o enfermeiro lhe deu, ela percorre o amplo espaço, observando. A decoração é moderna, mas sem vida, percebe que o apartamento não é de uso diário. Márcio fora claro quando a trouxe, aquele lugar servia apenas para encontros discretos. “Extra conjugais”, ele rira, tentando aliviar a tensão quando a fechou ali. Cassandra não ligara. Um teto é um teto.
Ela caminha até o quarto principal. O cheiro masculino está presente em cada detalhe, misturado ao perfume de alguma mulher que esteve ali recentemente. Cassandra abre o guarda roupa com uma pressa quase ansiosa. Precisa de algo que a faça se sentir gente novamente. Seus dedos deformados encontram uma camisa social azul clara, ainda dobrada. Sem pensar, ela a leva consigo para o banheiro.
O banheiro é outro mundo, amplo, azulejos claros, um espelho grande demais. Cassandra evita encarar o reflexo. Liga o chuveiro, e quando a água quente escorre pela pele marcada, é como se um pedaço do peso que carregava fosse embora. Ela chora baixo, mordendo os lábios, mas não consegue conter. Há dias não tinha um banho digno. Lava o corpo devagar, esfrega cada cicatriz como se pudesse dissolvê-la. Quando termina, a água escorre pelo ralo tingida de sujeira e sangue seco.
A camisa azul agora envolve seu corpo. É larga, cobre o suficiente para que ela não precise olhar para si. Com a roupa suja, improvisa, lava-a no tanque, torce e pendura para secar. O gesto é quase automático, mas o contraste fere a sua alma, Cassandra, a executiva altiva do Grupo Schneider, reduzida a lavar sua própria roupa como mendiga.
A fome, no entanto, não dá trégua. Abre a geladeira. Dentro, encontra pouco, latas de refrigerante, um pote de maionese vencida, restos de pizza fria. Revirando gavetas, acha pacotes de salgadinhos e um chocolate meio derretido. Cassandra suspira. Não é o banquete que está acostumada, mas é o que tem. Faz um café rápido com o pó encontrado no armário, o cheiro quente invadindo o ambiente. Ao menos isso a lembra de dias menos cruéis.
Exausta, segura a caneca entre as mãos queimadas, mas não termina de beber. O corpo pede descanso. Arrasta-se até a cama, ainda úmida do vapor do banho. O colchão macio parece engolir sua dor. Cassandra não luta, deita-se e, em segundos, dorme profundamente, entregue ao único conforto que resta.
Horas depois, desperta assustada. A noite ainda não caiu. Sente-se desorientada, mas aliviada. A roupa lavada já secou. Veste-a novamente, ajeita o moletom e se acomoda na sala. Está entediada, ansiosa, mas determinada a esperar Márcio.
O som da porta a faz gelar. Ele chega mais cedo do que imaginava. Cassandra se surpreende: imaginava que ele só viria ao anoitecer, mas ele entra com passos firmes. A expressão dele mistura tensão e alívio ao vê-la ali, comportada.
— Esfria a cabeça, Cassandra, diz Márcio, largando uma pasta sobre a mesa.
— Você precisa se recuperar antes de fazer qualquer coisa.
Ela ergue o único olho bom, fixo nele, ardendo em fúria e dor.
— Recuperar? Márcio, eu não tenho tempo. Preciso chegar ao meu apartamento em Ribeirão Preto. Lá tenho joias, dólares, coisas que posso vender. Não posso ficar assim, dependendo da piedade dos outros.
Ele suspira, coça a testa, como se buscasse paciência. Abre a pasta e retira um envelope recheado.
— Aqui tem dinheiro suficiente para você se virar. Em seguida, entrega uma pequena caixa. Dentro, um celular novo.
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