O pecado original romance Capítulo 73

A música “Linger”, do Cramberries, soava particularmente suave na voz de Ana, a menina de pele clara que se sentava à mesa, junto dos amigos de Melissa. Além de vestir um vestidinho claro, de cor perolada, ela tinha as orelhas levemente pontiagudas e voltadas para a frente, traços faciais finos e delicados, dentes pequenos e perfeitamente alinhados e olhos âmbar e amendoados e repletos de uma curiosidade genuína e quase infantil, o que a fazia lembrar, vagamente, uma das elfas das histórias de Tolkien. Todos ali observavam a moça, quase que enfeitiçados pela maneira etérea como ela se movia sobre o palco. A melodia em sua voz, parecia capaz de derreter defesas erguidas e penetrar o cerne dos ouvintes, que suspiravam, encantados.

Jonathan voltava do balcão, já alegre dos outros quatro canecos os quais havia entornado, a tento de espantar a ansiedade que crescia em seu estômago. Ele havia sido capaz de se soltar um pouco, rindo das piadas e respondendo o que lhe era questionado, mas afora isso, tentava lidar com seus próprios demônios de maneira silenciosa.

Quando se sentou, depositou o caneco que Melissa havia lhe pedido e se concentrou em beber. Sua percepção já se fazia um tanto turva, mas Eva estava constantemente lá, em diversas situações às quais a mente de um homem apaixonado e alterado pela bebida podia criar.

— ...Jonathan. – Melissa chamou, como se aquela não fosse a primeira vez.

O rapaz a encarou, como se acordasse de um sonho.

— Hã. O que foi?

Melissa bebeu um longo gole do caneco, constatando estar estupidamente gelado e não demonstrando metade da suscetibilidade do rapaz quanto ao álcool.

— Você está bem? – Ela perguntou, levando a mão ao seu joelho.

Jonathan deu de ombros. A bem da verdade, “bem” era uma palavra forte demais para descrever como se sentia. O estômago se embrulhava a todo momento, enquanto ensaiava as palavras que diria para Eva. Sentia como se aquela fosse ser a primeira conversa a sério dos dois e temia a maneira como ela reagiria. Em seu jovem coração, temia perder a pessoa por quem mais havia tido sentimentos em sua vida, mas sabia, no entanto, que no fundo, Melissa estava certa. Quanto de si mesmo ele seria capaz de sacrificar para ver uma Eva livre e satisfeita? Ela já havia lhe dito que o que sentia por ele não era amor. Mas tê-la daquela maneira, pela metade, era algo que, com o passar do tempo, acabaria transformando-a completamente em algo que o faria sentir repulsa ou, até mesmo, ódio. Ambos, sentimentos os quais não queria sentir. Não por ela.

Ele havia sido claro sobre o quanto queria estar com ela. Por que ela não podia ser, também, sincera? Ao menos, ele saberia o que esperar. Preferia suportar a verdade cruel do desapego do que alimentar a fome constante da esperança e da incerteza. Ela era, sim, casada com seu primo, mas, pelo que ela havia lhe contado, Eric vinha tendo um caso. Ela não entrara em detalhes, mas aquela notícia enchera o coração do rapaz de dúvidas ainda mais traiçoeiras. Estaria, ela, o usando como vingança? O quanto daquele sentimento que ele pensava enxergar na maneira como ela o olhava era genuíno?

Ele encarou Melissa, com os olhos entristecidos e repletos de insegurança. Estava ele bem?

O barulho ensurdecedor de aplausos entusiasmados tomou todo o ambiente e Jonathan se ergueu quando Melissa estendeu sua mão.

— É a sua vez. – Ela disse, sorrindo em deboche.

O rapaz a encarou com os olhos verdes transformados em interrogação.

— Eu coloquei seu nome na fila. – Ela explicou. – É sua vez de cantar.

Jonathan balançou a cabeça em uma negativa e estava preparado para negar quando seu nome foi chamado no microfone.

— Jonathan... – Um homem chamou. – Quem é Jonathan?

Ele tentou esconder seu rosto, mas as pessoas na mesa começaram a socar o tampo de madeira, clamando seu nome em uníssono. O clamor se espalhou de maneira contagiosa por toda a extensão do salão, fazendo com que Jonathan corasse exageradamente.

Melissa levou a mão ao ombro do rapaz e o virou em direção ao palco, empurrando-o.

— Arrasa, grandão. – Ela cochichou em seu ouvido, depositando uma sonora palmada em sua bunda.

Sem escolha e impelido pela pressão da multidão, Jonathan cambaleou, contrariado até a pequena escadaria, lutando contra os efeitos que o álcool lhe causava.

Havia, a nível de decoração, vários instrumentos musicais pendurados na parede atrás do palco. Jonathan se aproximou do monitor, que ficava sobre um rack ao lado de um livro repleto de códigos numerais e nomes de músicas. Ele buscou algum título conhecido o qual se sentia seguro o suficiente para cantar, mas foi incapaz de encontrar um com o qual se sentisse satisfeito.

Ele suspirou, frustrado. A multidão começou a parecer impaciente, se perguntando se ele iria ou não iniciar sua performance. Ele se dirigiu, então, até a parede, parou de frente para um velho violão e passou o dedo pelas cordas. Aguçou, então, seus ouvidos testando acorde por acorde, constatando, satisfeito, que as cordas se encontravam devidamente afinadas. Ele tirou o instrumento do suporte com cuidado e caminhou até uma cadeira, puxando-a para o centro do palco, onde ajeitou o microfone à altura ideal.

— Ahem. – Ele pigarreou, depois de se sentar. – Eu não encontrei nenhuma música ali a qual eu me sentisse seguro para cantar.

Sua voz saiu embargada do nervosismo e do álcool e ele temeu, naquele momento, ser incapaz de dedilhar as cordas com a maestria mínima necessária.

— Pelas músicas que vocês têm escolhido ao longo da noite, talvez acabem não gostando do que vou cantar. – Ele admitiu, sentindo o estômago dar voltas. – Mas é uma música que meu pai costumava cantar para minha mãe quando eu era uma criança e ela tem muito significado para mim.

Ele observou os rostos na multidão a encará-lo, curiosos. Seu coração deu um pulo dentro do peito quando ele pensou ter tido um vislumbre do rosto de Eva se dirigindo a um dos cantos.

Ele ensaiou alguns acordes, checando a afinação uma última vez e então levou a boca ao microfone murmurando e dedilhando o instrumento, surpreendendo aos presentes com um timbre suave e harmonioso.

— Quando uma estrela cai... – Ele começou a música de Almir Sater, ouvindo o suspiro de alguns, que finalmente haviam sanado a curiosidade sobre qual canção seria tocada. — ...no escurão da noite e um violeiro toca suas mágoas...

Melissa ostentava um semblante surpreso, como se não fizesse ideia de que Jonathan possuía uma voz tão agradável ao cantar.

Não era costumeiro que ele contasse a outras pessoas ou se gabasse daquele talento, mas havia aprendido a tocar havia anos, com seu pai, que insistira para que soubesse para auxiliá-lo nas missas na igreja da cidadezinha onde moravam no interior, nos domingos de manhã. Aquela música, em específico, trazia-lhe lembranças de casa e dos irmãos. Dos pais e do velho avô que havia falecido alguns anos antes e ele não pôde deixar de sentir a melancolia a se misturar a toda a ansiedade a qual vinha experimentando.

Ele passeava, vez por outra, os olhos pela multidão, a cantar e analisar as reações estampadas nos rostos. Sentia-se particularmente ansioso quando via as pessoas cochichando, obviamente sobre a sua figura no centro do palco. Foi num desses passeios visuais que ele a viu, recostada a um canto próximo à porta de entrada. Estava exuberante em seu vestido preto que lhe caía até os tornozelos e revelava grande parte do decote e da coxa. Os cabelos castanho claros e trançados em uma tiara sobre a cabeça e a tez clara como uma nuvem em um céu ensolarado. Eva havia realmente deixado o que quer que estivesse fazendo para ir até ali.

Jonathan fechou seus olhos, concentrando-se na música e se deixando levar pela melodia que tocava. Com Eva ali, seu coração parecia mais leve. A ansiedade ruim e destrutiva dava espaço a uma euforia gostosa e benvinda que aconchegava em vez de apertar. Ele abriu os olhos, olhando em direção aonde ela estava para, com uma piscadela, dedicar-lhe o resto da canção. E assim como ela havia surgido, ela desvaneceu. Ele chacoalhou a cabeça, tentando espantar a leve tontura que o álcool lhe proporcionava. Teria sido impressão? Estaria, seu coração, tão cheio de expectativas que havia criado uma miragem daquilo que mais desejava ver?

Os acordes se seguiram, ordenados da maneira como haviam sido treinados à exaustão anos antes e, assim, Jonathan encerrou a música, com seus olhos fechados.

O público ovacionou com vontade e ímpeto, aclamando uma performance fora do usual. Jonathan sorriu, satisfeito e, apesar de envergonhado, sentia-se orgulhoso de si mesmo. Tinha, no entanto, de sair à procura de Eva. Então, pendurou com cuidado o violão de volta à parede e desembestou-se escada a baixo, por pouco não caindo no caminho.

Ele foi até a mesa para encontrar Melissa e contar que havia visto Eva, mas também ela parecia ter sumido. Ele ignorou os elogios e cumprimentos tecidos a ele e cambaleou para um canto, esbarrando nas pessoas.

Um breve vislumbre de algo familiar o fez seguir, apressado em direção a um pequeno corredor mal iluminado, onde haviam as portas dos banheiros.

— Eva? – Ele chamou, seguindo uma figura esguia que havia entrado por uma das portas.

Ele abriu a porta, ignorando o fato de aquele ser o banheiro feminino e, vendo a forma esguia em sua frente, a puxou contra si. A pele alva, a boca rosada, os cabelos castanho claros, quase dourados. Ele a apertou contra si.

— Eu quero que seja minha. – Disse, em um rompante de coragem, afastando seu rosto por um momento. – Só minha.

Jonathan tocou os lábios pequenos e rosados com os seus próprios, envolvendo-os em um beijo repleto de sofreguidão que, a um primeiro momento lhe pareceu um tanto diferente. Ignorou aquilo

O perfume lhe invadiu a narina. Havia algo de errado com aquele cheiro, mas teve prazer em ignorar. As línguas dançavam, digladiando-se frenéticas enquanto as mãozinhas miúdas passeavam pelo seu peito musculoso. Ele levou as mãos ao quadril delicado, contornando as curvas por sobre o vestido claro de cor perolada... havia algo errado. O que poderia ser? O fantasma do álcool a tirar-lhe a capacidade de raciocínio enquanto as mãos passeavam por sobre o tecido claro... de cor perolada. Por que ele era claro e de cor perolada? Antes era...

— Jonathan? — A voz familiar o chamou. – O que está fazendo?

Jonathan se virou em direção ao fundo do banheiro, onde Eva e Melissa se prostravam, perplexas. Os enormes olhos azuis de Eva a encará-lo, rasos d’água.

— Mas então, quem...? – Jonathan olhou para a figura aninhada em seus braços. – Ana?

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