– Sara, você está aceitando um último pedido? – Gritou Aninha e eu concordei. Já tinha fechado a janelinha dos pedidos, de forma que não pudesse observar quem estava pedindo, mas bufei. Um apenas. Seria rápido. Concordei, balançando a cabeça.
– Sim, vamos lá, prima. – Disse me preparando para o último do dia.
Estava já mentalmente cansada. E isso porque ainda tínhamos 45 dias de aberto. Não fazia muito tempo que estávamos trabalhando efusivamente. Mas eu aguentava e, na verdade, gostava muito do que fazia. Assim, aquilo meio que era um prazer para mim.
– Um sanduíche de peito de peru, salada grega e mostarda e mel! – Disse Aninha e eu concordei enquanto montava o prato pedido. Rapidamente entreguei para Aninha e passei a limpar o mínimo de bagunça que eu tinha feito antes de fecharmos. Provavelmente seria o tempo de a mulher comer, isso se ela fosse comer ali, já que Aninha não tinha me dito que era para a viagem.
Anotei numa folhinha o que teria que preparar para levar no outro dia, o que possivelmente não seria suficiente para o outro dia e que eu precisaria preparar mais, como alguns molhos que eu mesma tinha inventado. Terminei de passar pano no que devia e tirei o avental, soltando o meu cabelo novamente. Ele agora uma massa disforme como sempre foi.
A verdade é que eu já não ligava mais para toda a beleza que tinham me feito. Meu cabelo já crescia a raiz escura e o resto das cores se misturaram de uma maneira horrível. Aninha me obrigou a passar uma tinta da cor da minha raiz nas pontas, para ao menos não ficar tudo de uma cor disforme, já que eu preferia aceitar a minha cor verdadeira novamente, o meu eu verdadeiro, e não o meu eu mentiroso, da grande trama de mentiras, como eu dizia para mim mesma. De qualquer forma, eu aceitei o que ela pediu e deixei retornar a minha origem, na medida do possível. Agora, essa origem caia pelos meus ombros naturalmente.
– Sara, a moça "ta" querendo te agradecer pessoalmente. E o seu Pedro disse que já está chegando. Mais cinco minutinhos. – Disse Aninha e eu concordei pegando a minha bolsa num canto escondido da cozinha e saindo para o lado de fora do restaurante. Seja quem fosse, poderia me agradecer enquanto eu seguia com Aninha para o nosso uber.
Sai e busquei pelo olhar quem seria a mulher que estava me parabenizando. No entanto, quando meu olhar encontrou um rosto conhecido, isso pareceu fazer todo o meu corpo gelar de uma maneira sem igual enquanto eu perdia a cor só de ver ela ali. O que ela queria afinal? Fechei a cara.
– O que faz aqui? – Perguntei séria e Mara deu de ombros.
– Precisamos conversar. A propósito, uma delícia a sua comida. – Eu fingi não ouvir o elogio. A verdade é que da mesma forma que não conseguia olhar para a cara de Ale, não conseguia fazer o mesmo com Mara. Por conta própria eu tinha parado de respondê-la e até a bloqueado no Whatsaap.
Afinal, Mara também participou de toda a artimanha de conhecer um pouco da minha intimidade. Ela, junto de Ale, sempre soube dessa maldita mentira e dessa invasão e me tratou de uma maneira como se não me conhecesse, descaradamente. Eu não queria guardar rancor, mas a imagem dela já estava vinculada a de Ale e eu simplesmente não conseguia desvencilhar uma da outra. Era isso e ponto final.
– Não quero conversar. – Respondi grosseiramente e Mara bufou colocando o peso do seu corpo no outro salto.
– Me dê uma chance, Sara. – Disse Mara piscando efusivamente. Suspirei. Eu só podia ser uma idiota, porque concordei meneando a cabeça, aceitando dá-la uma segunda chance.
Mara estava usando um lindo vestido florido preto com branco até o joelho e um casaquinho preto por cima. Além de sandálias de salto alto pretas no pé e uma grande bolsa no canto do corpo. Era incrível como Mara sempre estava Maravilhosa.
– Eu fico para fechar. Pode deixar. – Disse Aninha e logo completou. – Só não se afastem muito. – E eu e Mara concordamos enquanto andávamos pelas calçadas da avenida paulista.
Demos poucos passos e eu esperei que Mara começasse o assunto. Ou o que ela quisesse falar. Fiquei olhando o horizonte, as ruas já vazias e esperando até que Mara torceu o nariz e disse a única coisa que pensei que ela não diria num momento daqueles:
– Aff, você deixou o trabalho de Kadin sair todo. Ai meu Deus, isso que é amar essa cor horrenda. Ai Sara, docinho, você fica parecendo uma pálida morta viva. Pronto, falei. Não gosto de você com o cabelo preto assim. – E eu só consegui rir da sinceridade nas palavras de Mara enquanto balançava a cabeça sem acreditar.
– É sério mesmo que eu te dou uma segunda chance e você vem me falar do meu cabelo, Mara? – Mara deu de ombros rindo também.
– Ora essa, mas é a verdade! E eu odeio ver como você negligencia a moda, docinho! – Ela disse e eu não mais a respondi, pois, de fato, esse era o meu verdadeiro eu. E eu não ia mais, não a partir dali, mentir quem eu era de verdade. Uma coisa que aprendi foi aceitar quem eu era, mesmo que a verdade fosse cruel.
– E eu queria te dizer que no começo eu não aceitei nada disso. Mas Ale planejou tudo. E eu dependo do meu emprego, Sara. Eu tive medo sim de perder o meu emprego. E sim, eu me preocupo muito com isso, tal como sei que você também se preocupa. – Ela umedeceu os lábios vermelhos para falar. Continuei ouvindo sem a interromper. – Você talvez não saiba, mas não é todo mundo que é tão gentil como o Ale e aceita que seu funcionário troque de sexo, porque não se aceita como homem. E como seria difícil eu encontrar alguém que quisesse trabalhar com um travesti. Sim, Sara. O mundo preconceituoso não tem espaço para mim. Então, eu dependo de Ale. Dependo do seu ponto de vista de aceitar quem os outros são, do jeito que querem ser, da mesma forma que ele sempre quis ser aceito pelo pai quando começou a gostar de cozinhar. – Disse Mara como se falasse de algo distante.
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