Momentos antes
O ar estava pesado na floresta.
As folhas dançavam em silêncio sob a brisa que anunciava o cair da noite, e os lobos da alcateia já se reuniam ao redor da clareira sagrada. A lua cheia começava a subir no céu, seu brilho prateado refletindo sobre as peles e olhos atentos. Tudo estava preparado, tudo sob o controle de Kael.
O alfa observava tudo de cima, de um dos degraus de pedra que levavam ao altar da bênção. Seus olhos dourados percorriam os arredores com rigidez. Nenhuma vela fora esquecida, nenhuma fita fora mal amarrada. O baile da primavera estava perfeito. Como deveria ser.
Era o primeiro baile da primavera que celebrava como alfa, seu pai havia lhe passado o título no ano anterior, no outono, e agora ele finalmente encontraria sua companheira, se a deusa da lua assim quisesse.
— Está tudo como você pediu, Kael — disse um de seus soldados, curvando-se respeitosamente.
— Como eu mandei, você quer dizer — respondeu ele, seco. — Pode ir. E tire aquele arranjo horrível da entrada. Quem amarrou as flores com cipó seco deveria ser punido por atentado estético.
O soldado engoliu em seco e saiu às pressas. Kael suspirou, não estava nervoso, não era esse tipo de homem. Apenas… inquieto. Desde a manhã, um pressentimento estranho o acompanhava. Camilla havia passado a noite em seus braços, como tantas outras vezes, mas algo estava diferente, ele havia sonhado com a mãe.
Não era comum sonhar com ela.
A última lembrança era o sangue escorrendo pelo vestido azul claro. A pele pálida, os olhos abertos, vidrados. A boca ainda formando a palavra “corra”. Mas ele não correu, não teve tempo.
Kael sacudiu a cabeça, afastando o pensamento. Aquilo era o passado. Agora, era o momento da bênção, Camilla estava se preparando, e logo surgiria como a loba digna que era.
Forte, bonita.
A futura Luna.
O som do chifre cerimonial preencheu a clareira, silenciando os tambores. O fogo foi aceso no centro, e a anciã começou a caminhar entre os escolhidos, abençoando-os um a um. Kael manteve-se firme, mãos atrás das costas, o olhar altivo.
E então... aconteceu.
Foi um cheiro delicioso familiar.
Rosas do campo e hortelã.
Forte.
Inconfundível.
Cortando o ar como uma flecha.
Seus olhos se estreitaram, o peito ardeu. As mãos tremularam imperceptivelmente, a hora finalmente havia chegado, sua companheira… Ele olhou ao redor em busca de Camilla, tinha certeza que era ela.
Camilla era a melhor em tudo, a fêmea mais forte e digna, mas não era Camilla quem estava ali.
Não.
Kael virou a cabeça devagar, acompanhando o chamado invisível que queimava suas veias. E então a viu, uma jovem caminhava em sua direção, vestida de branco, um vestido simples, olhos arregalados, o rosto iluminado por um sorriso tímido e esperançoso.
Uma omega.
Uma… Empregada.
Por um segundo, tudo congelou, Kael sentiu o chão sumir debaixo dos pés e, então, a lembrança veio como um raio, cruel e inevitável.
Sangue.
Gritos.
A floresta em chamas.
Sua mãe ajoelhada no chão, tentando proteger o pequeno corpo dele com os braços frágeis. Os renegados rindo. As garras rasgando sua carne como se fosse papel. E ele, gritando por ajuda, implorando aos deuses, até a voz falhar.
Isso só podia ser uma piada, não havia outra explicação.
— Não... — murmurou, a palavra saindo quase num rosnado.
Lyra parou a poucos passos dele, ainda sorrindo, sem entender.
— Você... É meu companheiro — disse ela, com a voz trêmula, parecia tão feliz, e realmente estava. — A deusa nos uniu…
Não era a melhor das lobas, nem a mais forte, não era nada comparada a Camilla, mas ainda assim a deusa enxergava nela algo forte o bastante para ligá-la ao alfa, lhe dando por direito o posto de Luna da alcateia Ventos Escuros.
Kael deu um passo atrás, o cheiro dela o envolvia, queimava, marcava cada célula de seu corpo. O vínculo era real, estava ali, mas ele se recusou a aceitar aquilo. Um riso sem humor tomou seus lábios enquanto olhava para a pequena omega a sua frente com total desprezo.
Quem ela achava que era?
— Isso é um erro — rosnou, a raiva começando a borbulhar em suas veias. — Uma piada de mau gosto.
— N-não é... — Lyra tentou se aproximar, mas ele levantou a mão, em um gesto rude. — Eu... eu senti, sei que você também e…
— Cale a boca! — gritou ele, fazendo todos ao redor se virarem para a cena.
Parece que finalmente perceberam que a companheira do alfa havia se revelado e, entre todas as lobas, ela era a mais frágil. A cena fez os convidados sussurrar entre si e, ao longe, Camilla olhava a cena com ódio enquanto, ao seu lado, um soldado a encarava com olhos amorosos e tristes. Era seu companheiro, não era o alfa, mas estava disposto a amá-la com todo seu coração.
No entanto, isso não importava para Camilla.
Silêncio.
A anciã interrompeu sua bênção. Petra, entre as outras meninas, cobriu a boca, horrorizada.
Kael deu mais um passo à frente, os olhos cravados em Lyra com desprezo.
— Uma omega, fraca, insignificante. Acha mesmo que tem o direito de ser minha companheira? De ser minha Luna?
— Eu não escolhi isso… — sussurrou ela, os olhos marejados. — Foi a deusa que…
O silêncio era uma corda apertando a garganta de todos, a história da antiga Luna era trágica e ninguém a vida como uma vergonha, ninguém além do alfa, seu próprio filho. Petra chorava em silêncio no fundo da clareira, sendo segurada por dois guardas. Camilla sorria de canto, saboreando cada palavra.
— E você quer que eu aceite isso de novo? Que me entregue a uma fêmea como ela? — Ele deu um passo à frente. Lyra instintivamente recuou, mas ele a segurou pelo braço, apertando com força. — Que arrisque minha linhagem, meu futuro, meus filhotes com alguém que talvez nem sobrevivesse ao parto?
Lyra fechou os olhos, tentando conter as lágrimas. Mas a dor não vinha apenas da força com que ele a segurava, vinha da alma. Do rompimento brutal do vínculo que ainda insistia em pulsar.
— Você não é digna de mim — disse ele com voz baixa, cruel. — Nunca será! Aceite a quebra! Aceite a porra da rejeição! — sua voz engrossou, seus sentidos de alfa aflorando e a voz de comando fazendo cada pedacinho do corpo de Lyra tremer.
Ela não podia resistir não àquilo.
— Eu…. Ah! — começou gemendo de dor curvando o corpo e colando o rosto no chão chorando a ponto de tremer. — Aceito… Sua… Rejeição…
Finalmente satisfeito, dando um ultimo olhar de nojo para a omega a seus pés, Kael virou-se para os guardas.
— Marquem-na como rejeitada. Todos os lobos precisam estar cientes do tipo de merda que ela é.
— Não! — Petra gritou de novo, mas foi calada por um tapa de um dos soldados que a fez cair pesadamente no chão.
Dois guardas maiores se aproximaram de Lyra, a omega até tentou recuar, mas já era tarde. Cada guarda a pegou por um dos braços, a erguendo do chão olhando para ela com olhares crueis e alegres.
— Por favor, não me machuquem… — implorou, memso sabendo que aqueles homens não teriam piedade dela.
— Não se preocupe, a dor que está sentindo agora é sí o começo — um dos guardas sussurrou, encostando o nariz no pescoço de Lyra e lambendo sua pele. — Vamos, o alojamento vai ter muito trabalho com essa aqui hoje…
— Alfa, por favor! Não faça isso por favor! — Lyra gritou enquanto era arrastada para fora. — Alguém me ajude! Não deixem que me machuquem! Eu não fiz nada, sou inocente!
Todos assistiram a cena em silencio, omissos. Sabiam o futuro distorcido e cruel que aguardava a pobre omega, mas arriscar suas peles por alguém insignificante não valia a pena.
Para eles ela não valia a pena.
Quando os gritos de Lyra sumiram e ela já não podia ser vista, o alfa se virou e se sentou em sua cadeira, então a anciã o olhou com uma expressão de sofrimento e, principalmente, de preocupação.
— A bênção foi corrompida — disse ela, tentando se recompor. — A deusa escolheu... e você rejeitou.
— Aquela maldita omega enganou a deusa com magia, tenho certeza — respondeu ele, virando-se de costas. — Mas não pode enganar a mim… Não a mim…
— Espero, pelo bem de todos, que esteja certo, alfa…
— Eu sempre estou certo.
E com essas palavras, Kael virou as costas para a cerimônia, para a clareira e para o destino que nunca quis aceitar.
Mas por mais que ele andasse, por mais que tentasse esquecer...
O cheiro doce dela continuava a segui-lo, lembrando-o que havia rejeitado a companheira por quem tanto esperou.
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