No alto do cânion, duas silhuetas cambaleavam até a beira do paredão. Cecile e Jully pararam, ofegantes, as mãos raladas agarradas à pedra quente. Lá embaixo, entre as fendas, algo tinha mudado, poeira recém-assentada, um risco mais claro na parede, a impressão de pegadas que não eram do vento. Um rastro, pequeno, sutil, mas ali.
— Você viu isso? — Jully sussurrou, a voz falhando. — E se forem… raposas?
Cecile soltou um meio riso cansado, que doeu no rosto marcado.
— Raposa não existem mais, não como antes pelo menos.
— Eu nunca vi uma — Jully confessou, encolhendo os ombros, os olhos arregalados. — Só ouvi história de gente que muda de pele igual lobo, mas menor… mais traiçoeiro. Minha mãe falava que elas eram más e que matavam lobos.
— Lobos matam lobos o tempo inteiro, lembra? Elas eram como a gente — Cecile respondeu, o olhar varrendo as fendas, atenta a qualquer brilho de metal, qualquer respiração errada. — Mas o número caiu faz tempo. Dizem que foram extintas na última guerra grande, se alguma sobrou, se esconde melhor do que a gente.
Um silêncio curto, o vento trouxe cheiro de poeira, pedra e… lobos, mas esse era tão sutil que quase não se sentia, Cecile só conseguiu sentir por causa do olfato apurado que tinha.
Jully mordeu o lábio, medindo coragem com medo.
— Então… quem quer que tenha passado por aqui pode ajudar a gente né?
— Talvez… Mas qualquer pessoa é melhor do que ele ou os homens dele — Cecile cortou, firme, o nome de Atlas engasgado no fundo da garganta. — E isso já é suficiente pra mim.
As duas se olharam, a decisão nasceu no mesmo segundo.
— A gente desce? — Jully perguntou, a mão tremendo no canto da rocha.
— A gente desce — Cecile confirmou, prendendo a corrente arrebentada no próprio pulso como se fosse amuleto. — Devagar. Se ouvirmos qualquer coisa errada, voltamos. Mas… eu não quero morrer aqui no topo olhando o nada.
Jully assentiu, o coração acelerado demais.
— Tá. Vamos achar ajuda nos cânions.
E, com o cuidado de quem pisa em vidro, as duas começaram a descer, seguindo o fio de poeira e esperança que a pedra lhes oferecia.
***
A luz da manhã entrou torta pela fenda do cânion, como se escorregasse de lado e desmanchasse em poeira dentro da caverna. O ar estava frio e tinha um cheiro de umidade, tinham feito uma pequena fogueira a noite e todos dormiram ao redor dela para tentar se aquecer já que o frio noturno ali castigava mesmo quem tinha pelos grossos para se proteger. Jogada de lado, a mochila com os remédios e kits de primeiros socorros que tinham levado caindo para fora, gaze, pomada, garrafa d’água, uma camiseta dobrada para virar curativo se precisasse.
E, tomando metade do espaço, a fera.
Caleb dormia encolhido de um jeito que parecia impossível naquele corpo enorme. As costas brancas, sujas de terra e sangue seco, subiam e desciam num ritmo lento. Os espinhos de osso projetados do ombro e da coluna davam a impressão de armadura, mas o que mais chamava atenção era como ele tinha se encolhido: joelhos quase no peito, o focinho meio escondido sob a própria pata, como quem tenta caber em si mesmo.
Lua despertou primeiro e ficou alguns segundos só ouvindo o ronco abafado, aquela vibração grave que fazia o chão tremer de leve perto das mãos dela. Sentiu o primeiro impulso, ir até ele, e o segundo, ficar exatamente onde estava.
Amber acordou com um espirro baixinho; a poeira da caverna fazendo seu nariz coçar enquanto ela dormia. Piscou, lembrou, olhou devagar para o lado, encarando o enorme monstro adormecido ao lado, segurando Tailon, que também encarava de olhos arregalados.
— Ele tá… — a voz dela saiu quase sem som — assim.
Tailon endireitou a coluna, o corpo inteiro em prontidão. Tinha dormido com a faca de campo encostada na coxa, e agora a mão foi automática até o cabo, não para usar, mas porque o gesto deixava o cérebro em modo “atenção, mas sem pânico”.
— Uhum — Lua respondeu, de olhos nele, a voz bem baixa. — Mas parece que tá dormindo pesado
Tailon, que nunca foi de mostrar muito, deixou escapar um “ah” feliz, meio rindo, meio incrédulo.
— Ele lembrou — Amber sussurrou, os olhos brilhando do jeito que só esperança faz. — Caleb, você… você tá aí!
Ele assentiu, o gesto numa cabeça daquele tamanho parecia terremoto, mas foi de uma delicadeza ridícula. E, antes que qualquer um dissesse mais, ele virou o focinho pra fenda da entrada e ficou escutando. Dois, três segundos, o corpo todo alerta. Depois, relaxou o suficiente pra tirar a pata do rosto. A luz chegou os olhos, ele piscou, não rosnou.
Lua se aproximou em silêncio. Ao contrário do que Tailon queria, ela não parou a um metro; parou a menos. Ficou ao alcance do hálito quente que saía pelo canto do focinho.
— A lua cheia acabou… Mas você ainda…
Caleb tocou a própria têmpora de leve com a ponta da garra, como se confirmasse que a cabeça não tinha virado outra coisa durante a noite.
— Eu… — procurou a palavra, achou — fico. — Bateu de leve no peito, o som oco de osso em músculo. — Ainda… eu.
Lua sentiu a pele arrepiar e o sorriso em seus lábios cresceu, de orelha a orelha numa felicidade genuina que acalentava o coração machucado por tudo o que aconteceu na noite passada.
— Você ainda é você, isso! — ela falou a empolgação clara na voz. — Consciência.
— Cons… ciência — ele repetiu, devagar, do jeito de quem segura um copo novo com as duas mãos. — É. — Respirou mais fundo. — Difícil. Mas… é.
Tailon passou a mão no rosto, aquele riso baixo que sempre aparece quando o corpo resolve descomprimir.
— Ok, então é oficial: você é um monstro menos monstruoso agora, parabéns!

Comentários
Os comentários dos leitores sobre o romance: Rejeitada: A Luna do Alfa supremo
Excelente pena que nao tem o livro impresso....
Muito bom! Livro excelente! História bem amarrada! Estou quase no final! Recomendo!...