O céu ainda estava coberto por um manto espesso de escuridão quando Lorenzo Velardi despertou. O quarto permanecia em silêncio absoluto, envolto por sombras que se arrastavam pelas paredes, e o único som audível era o leve tic-tac do relógio antigo pendurado ao lado da porta, como um lembrete implacável do tempo que corria, implacável, mesmo quando o coração desejava que tudo parasse.
Sentado à beira da cama, com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos entrelaçadas sob o queixo, Lorenzo encarava o chão como se ali, entre os veios da madeira, pudesse encontrar alguma resposta para o turbilhão que o consumia por dentro. A mala repousava ao lado da poltrona, pronta há horas. Rígida, fechada, organizada. Tudo o que ele precisava levar estava ali, menos o que mais doía, o próprio coração, que ele não conseguia silenciar, nem encaixar entre as camisas e os documentos.
Porque partir agora era diferente.
Pela primeira vez em anos, ir embora doía como uma ferida aberta. E doía porque, mesmo sem admitir em voz alta, ele sabia que estava deixando para trás mais do que uma casa e uma rotina. Estava deixando emoções que há muito tempo havia jurado não sentir mais.
Vestiu-se com calma, com a meticulosidade de um homem que tenta manter o controle de tudo ao seu redor. O blazer escuro caiu sobre os ombros com precisão. A camisa branca, impecável. A gravata, apertada com força, como se quisesse conter, com aquele nó, o impulso desesperado de voltar atrás.
Antes de sair, atravessou o corredor silencioso em direção ao quarto da filha. A porta entreaberta deixou escapar um fiapo de luz da luminária infantil em forma de lua. Ele parou por um segundo, sentindo o coração apertar, já prevendo o que o esperava.
Aurora estava acordada, sentada na cama, com os olhos ainda inchados de sono, os cabelos bagunçados e os pequenos pés descalços sob o cobertor cor-de-rosa. Ela esfregava os olhinhos com as costas das mãos quando o viu.
— Papai…? — a vozinha saiu num sussurro quebrado, carregada de um medo infantil que Lorenzo conhecia bem. — Vai viajar mesmo?
O coração dele tremeu. Respirou fundo, buscando a serenidade que não sentia, e entrou no quarto. Sentou-se ao lado dela e passou a mão com carinho pela bochecha da menina, que, instintivamente, se aconchegou em seu ombro.
— Vou, meu amor. Mas é só por pouco tempo. Papai precisa resolver algumas coisas do trabalho, lembra?
Aurora mordeu o lábio inferior e hesitou antes de perguntar, baixinho:
— Mas você vai voltar, né?
A pergunta o atingiu com força, como uma flecha certeira que atravessava todas as armaduras que ele havia construído ao redor do peito.
— Sempre volto pra você, meu pequeno girassol. — respondeu, com a voz rouca de emoção. — Você é meu mundo, minha luz, a razão de tudo.
Ela ficou em silêncio por alguns instantes, até que levantou o rosto e encarou o pai com aqueles olhinhos azuis, tão intensos e sinceros que pareciam enxergar dentro dele.
— Papai… eu sonhei com a mamãe essa noite.
Lorenzo parou. Sentiu o ar escapar do peito com uma força que não conseguiu controlar.
— É mesmo? — perguntou, tentando soar leve, mas a garganta apertava.
Aurora assentiu, os olhinhos brilhando.
— Ela estava linda… com um vestido branco que dançava no vento. A gente estava num jardim cheio de flores, e ela me abraçava bem forte… — a menina sorriu, mas havia algo de melancólico em sua expressão. — Ela disse que eu precisava dizer uma coisa pra você. Que eu precisava te lembrar que você… precisava se permitir sentir.
Ela olhou para o pai com genuína inocência e completou, franzindo o cenho:
— O que significa isso, papai?
Lorenzo sentiu os olhos marejarem. O peito doía como se estivesse sendo apertado por dentro, como se o passado e o presente se chocassem com violência. Ele apertou os lábios, desviou o olhar por um instante, lutando contra a emoção que ameaçava transbordar.
— Depois o papai te explica, tá bem? — murmurou, forçando um sorriso enquanto beijava a testa dela. — Agora você precisa descansar.
— Tá bom… mas não demora muito pra voltar, tá?
— Prometo.
— Papai?
— Diga minha princesa?
— A tia Isa vai embora?
Lorenzo fechou os olhos por um segundo.
— Não. Ela vai ficar, ela prometeu.
— Cuide bem dela.
A resposta veio sem hesitação. Firme, certeira, como o próprio amor.
— Sempre.
Havia mágoa no olhar de Isabella, sim. Mas também havia dignidade. E um amor silencioso que ele não merecia, mas que, mesmo assim, estava ali.
Lorenzo segurou o olhar dela por mais um instante. Depois, virou-se devagar, pegou a mala e atravessou a porta, sem olhar para trás.
Do andar de cima, pela janela do quarto de Aurora, Isabella o viu entrando no carro. Viu quando o veículo se afastou pela estrada ladeada de árvores. E com ele, partiu também o pedaço dela que, por uma noite, ousou acreditar que poderia amá-lo sem se machucar.
Aurora se aproximou pela janela, ainda de pijama, e envolveu a cintura da babá com os braços pequenos e quentinhos.
— A gente vai sentir saudade dele, né?
Isabella abaixou-se até ficar na altura da menina e a abraçou com força, sentindo o calor da infância que tanto a fortalecia.
— Vamos sim, meu amor. Mas ele vai voltar. E quando voltar… talvez seja diferente.
Aurora franziu a testa, confusa.
— Diferente como?
Isabella sorriu. Era um sorriso triste, mas cheio de esperança. Um sorriso de quem conhecia a dor e ainda assim escolhia acreditar.
—Diferente… como alguém que finalmente entendeu que fugir não é o caminho.
Mas será que Lorenzo conseguirá, dessa vez, deixar de fugir? Ou o medo vai falar mais alto do que aquilo que pulsa dentro dele, toda vez que encara os olhos da mulher que está transformando sua vida, um gesto de cada vez?

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