Depois do primeiro baque, a casa voltou a se mexer.
Não era como antes, não tinha a risada de Isabella vindo do corredor, nem Lorenzo assobiando sem jeito ao procurar as chaves, mas tinha movimento. E o movimento era importante, pensou Antonella: gente parada pensa demais, e pensar demais, às vezes, é abrir portas que a gente não devia.
— Vamos lavar o rosto, minha princesa? — sugeriu Giulia, estendendo a mão. — E tomar um suco. A gente precisa de força para cuidar da mamãe à distância, sim?
Aurora assentiu.
No banheiro, a tia ligou a torneira, a água fria mordeu de leve os dedos e a garota esfregou o rosto com movimentos redondos, obedientes. Viu-se os olhos molhados, narizinho vermelho, mas uma coisa brilhava lá no fundo.
“Sou irmã mais velha” — pensou e a frase fez cócegas no peito.
Na cozinha, Maria já tinha preparado suco de laranja e cortado umas fatias de bolo de milho que sobrou do dia anterior. O cheiro doce do bolo brigava com o cheiro de preocupação, tentando ganhar a disputa. Aurora bebeu o suco em goles curtos, silenciosa, enquanto Antonella passava recados no telefone, mensagens para o hospital, para Lorenzo, para o motorista e Giulia respondia a mensagem de Beatrice, prima de Isabella. que o quadro era delicado, mas ela está estável… precisamos rezar.
— Vovó, posso ligar para o papai?
— Podemos mandar uma mensagem para ele, meu amor. — Antonella disse, passando um carinho no rosto dela. — Ele está numa sala onde o celular não toca, mas quando ele sair, vai ver.
Aurora franziu a testa, pensando muito sério.
— Então… posso fazer um desenho para ele ver quando olhar o celular?
— Pode. — respondeu Giulia, num pulo. — E a gente tira foto e manda. Que tal?
Aurora abriu um sorriso verdadeiro, o primeiro daquele dia. A tia trouxe uma pasta de lápis de cor e um bloco de folhas que Isabella guardava para as tardes de desenho. A menina puxou uma cadeira, esticou as perninhas e começou. Primeiro, o céu, depois um sol exagerado com olhos e sorriso. No meio, ela desenhou três mãos dadas: uma grande (papai), uma média (mamãe), e uma pequena (ela). Fez um coração vermelho em cima de Isabella e, então, parou. A mão ficou suspensa, como se procurasse algo que ainda não sabia desenhar.
— Faltou alguém, né? — Giulia cochichou, adivinhando a pausa.
Aurora assentiu, mordendo a língua do lado, concentrada.
— O bebê. — Ela escolheu um lápis amarelo clarinho e desenhou um coração pequenininho dentro da barriga de Isabella. Por cima, escreveu: “Volta mamãe. Eu e o bebê te amamos.”
Giulia fotografou, com cuidado de não tremer, e enviou para Lorenzo.
— “Ela fez para você”. digitou. “E para ela.” Minutos depois, a confirmação da entrega trouxe um alívio mínimo: o mundo lá de fora existia, Lorenzo existia, e, em algum momento, leria.
Antonella interrompeu a corrente de silêncio com uma ideia que, naquela casa, sempre vinha com cheiro de abraço.
— Maria… você acha que a gente consegue fazer pão de queijo? — perguntou, sabendo que Maria sempre conseguia.
Maria fungou, recolheu as lágrimas com o dorso da mão e endireitou a coluna.
— Pão de queijo cura até tristeza velha, dona Antonella. Vamos já.
Aurora pulou da cadeira.
— Posso ajudar?
— Ajudar? — Maria sorriu, finalmente sorrindo de verdade. — Vai ser a chefe da mesa.
Na bancada, os ingredientes se alinharam como soldados: polvilho, ovos, leite, queijo ralado e óleo. Maria explicava cada passo com paciência de professora, Antonella regulava o forno, Giulia fazia bolinhas (umas do tamanho certo, outras claramente “Aurora size”). A menina enfiava os dedinhos na massa, ria quando grudava, batia palmas quando a bola ficava redondinha.
— Esse é para a mamãe. — dizia, colocando uma bolinha numa forma. — Esse é para o papai. Esse é para o bebê. — Pausa. — O bebê come pão de queijo?
— Por enquanto, quem come é a mamãe. — Antonella respondeu, desviando o olhar emocionado. — Mas ele sente que a gente está feliz.
— Então vou fazer um grandão de felicidade. — Aurora decretou, juntando duas bolinhas em uma.
O forno aceso trouxe calor para a cozinha e, com ele, um pouco de normalidade. O cheiro do pão de queijo invadiu a casa como um abraço antigo, daqueles que lembram visitas da infância, tardes de chuva, risos no quintal. Maria abriu a porta do forno e um vapor perfumado subiu, fazendo Giulia fechar os olhos por um segundo, como quem guarda o cheiro para quando precisar.
Entre uma fornada e outra, Antonella pegou novamente o terço. Rezava baixinho, as contas correndo nos dedos num ritmo que só o coração conhece. Às vezes, Aurora repetia algumas palavras, do seu jeito, mais perto de cantiga do que de reza, mais valia. Tudo valia.
— Vovó, posso falar com a mamãe do céu? — perguntou, de repente, olhando para cima com uma determinação doce.


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