Passaram-se alguns dias como quem vira as páginas de um livro com cuidado para não amassar as bordas. A casa foi se ajustando a um novo ritmo, mais leve que a angústia da espera, mais lento que a pressa do mundo lá fora.
No quarto, as cortinas ficavam entreabertas para deixar entrar uma luz mansa de manhã. A tarde, o abajur lançava aquele halo dourado que parece aquecer o lençol. Isabella passava boa parte do tempo ali, deitada, amparada por almofadas macias, obedecendo ao corpo que ainda pedia descanso. E, sobre ela, sempre uma pequena constelação com nome e sobrenome: Aurora.
A menina transformou a cabeceira em seu território sagrado.
Tinha um kit permanente de cuidados, livros, lápis de cor, um borrifador de água “com cheiro de jardim”, band-aids com desenhos, uma garrafinha com canudo e uma playlist de músicas de ninar no celular. Entre uma leitura e outra, Aurora fazia sessões de “carinho profissional”: dedos levinhos subindo pelo braço da mãe, beijos repicados na testa e declarações que apareciam do nada.
— Você já está cem por cento curada agora, mamãe? — perguntava, com a seriedade de quem entrevista um médico.
— Ainda não cem. — respondia Isabella, rindo de canto —, mas oitenta e cinco, noventa… e subindo.
— Então falta só um pouquinho. — E Aurora fazia um gesto com o indicador e o polegar aproximando-se até quase se beijarem. — Esse pouquinho aqui, eu curo com beijo.
E curava.
Um, dois, dez beijos, até a mãe pedir trégua, e as duas caírem na cama rindo.
Dona Flora, que decidiu “passar uns dias na cidade para ajudar a cuidar da neta”, chegou com o xale de florzinhas nos ombros e uma mala que denunciava a verdadeira intenção: ficar o tempo que fosse preciso. Bastou cruzar a porta para a casa ganhar outro perfume, cheiro de bolo recém-saído do forno e de histórias de quintal.
— Eu tomo conta desta convalescente. — decretou, pousando uma cesta de pães na mesa —, mas só se me prometerem que ninguém vai discutir comigo sobre tempero.
Ninguém discutiu e em poucas horas, ela, Maria e Antonella já tinham estabelecido um turno não oficial, uma espécie de plantão das matriarcas. Revezavam-se para ficar no quarto com Isabella, enquanto na cozinha trocavam receitas como quem troca cartas de amor.
O caderno de Maria ganhou páginas novas com “canja da Flora” e “bolo de fubá de três texturas”, enquanto Antonella prometia ensinar “macarrãozinho caseiro para dias de chuva”. Riam quando alguém esquecia o tempo da assadeira, e a casa, agradecida, suspirava com o cheiro de coisa boa no forno.
— Essa canja tem segredo. — Flora dizia, mexendo a colher de pau devagar. — O segredo é mexer pensando em quem vai comer.
— Então vai ficar perfeita. — Maria respondia, com o olhar úmido. — Essa casa inteira está pensando nela.
No quarto, Isabella saboreava cada colher como quem saboreia a vida. O traumatismo ainda cobrava sua parcela: havia manhãs mais sonolentas, momentos de tontura se a luz batia forte demais, aquela fadiga miúda que aparece sem pedir licença.
Mas agora tudo vinha sem pânico.
A presença das mulheres de sua vida a cercava num pacto silencioso de cuidado. E, por baixo de tudo, o compasso pequeno do bebê, redundante e reconfortante, lembrava-lhe, a cada afago no ventre, que a história seguia.
Lorenzo saía para trabalhar, relutante no começo, culpado por cada minuto longe, mas voltava cedo. Tinha reorganizado agendas, delegado o que podia, cortado o que não precisava e descoberto que o essencial, afinal, morava naquela casa. Entrava todas as tardes com os ombros carregados de “estou com saudade” e, antes mesmo de largar a pasta, já estava no quarto, beijando a testa de Isabella e recolhendo Aurora no colo.
— Relatório do dia, doutora? — perguntava à menina, teatral.
— Paciente: mamãe Isabella — lia Aurora, inventando um prontuário. — Evoluiu bem. Comeu canja da vovó Flora, tomou água com limão da vovó Antonella, fez cochilo duplo e sorriu nove vezes. Faltam onze sorrisos para dar alta completa.


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