O céu ainda chorava com a mesma fúria contida que tomava conta dele por dentro.
Lorenzo empurrou a pesada porta da mansão Velardi com o ombro, os dedos úmidos escorregando pela maçaneta. A chuva ainda escorria por seu rosto como se cada gota lavasse, em vão, o gosto amargo da culpa. As roupas estavam encharcadas, coladas ao corpo, o colarinho da camisa aberto como se já não houvesse forças para manter nem a aparência intacta.
O cheiro do uísque misturado à água da tempestade subia pelas suas narinas e se misturava com o perfume úmido do jardim. Mas não era isso que o sufocava. Não era o frio, nem a umidade, nem o álcool. Era a lembrança. Aquela maldita lembrança. A imagem de Isabella parada diante da flor de Letícia, encharcada, vulnerável, com a camisola grudada ao corpo como uma segunda pele, tão indefesa e ao mesmo tempo tão intensa, como se fizesse parte da própria chuva.
A imagem dela o devastava. Ela com os cabelos colados à testa, os olhos tão abertos e vivos, as lágrimas disfarçadas de chuva. Isabella parada ali, com o mundo caindo ao redor, era mais real do que qualquer coisa que ele permitiu sentir nos últimos anos.
Cada passo dado em direção à escada parecia pesar toneladas. O piso de mármore molhado por suas botas deixava pegadas que sumiriam com o tempo, ao contrário do que sentia por dentro, que só se tornava mais nítido. Lorenzo subiu sem se importar com os rangidos dos degraus, sem se importar com o fato de estar ensopado, exausto, ou prestes a desmoronar. Quando entrou em seu quarto, bateu a porta com força e se apoiou nela como se aquele pedaço de madeira fosse a única âncora entre ele e o colapso.
Fechou os olhos com força.
E viu os dela. Aqueles olhos que diziam tudo sem uma única palavra.
— Porra… — murmurou entre os dentes, pressionando os dedos contra as têmporas latejantes.
Andou até a janela, quase tropeçando no próprio desespero. Puxou a cortina com violência, o olhar varrendo o jardim abaixo.
Ela não estava mais lá.
Mas a flor permanecia.
Aquela maldita flor azul.
Letícia a chamava de "estrela caída na terra". Uma metáfora boba, mas que agora parecia fazer sentido demais. Ele mesmo a plantara, num dia tão molhado quanto aquele, só para vê-la sorrir. Agora ela estava ali, sozinha, resiliente, uma mancha viva de azul em meio à grama cinzenta e encharcada.
E Isabella… era outra flor fora de lugar. Outra estrela que ele não sabia se devia arrancar ou proteger.
✦ ✦ ✦
A manhã seguinte nasceu acinzentada, quase como se o céu ainda lamentasse o que havia acontecido.
Isabella mal dormira. Passara a noite em um turbilhão de pensamentos, sentada na beira da cama, com o robe enrolado no corpo, as mãos entrelaçadas e o coração disparado. Sentia o gosto do beijo que quase aconteceu, sentia o toque dele como uma marca viva, e doía. Mas doía ainda mais lembrar das palavras frias que vieram depois, como se tudo fosse um erro.
Mas não era.
Ela sabia que não era.
Vestiu-se com um vestido simples, rosado, que lhe caía como uma promessa de calma que não existia. Prendeu os cabelos num coque malfeito, deixando alguns fios soltos caírem ao redor do rosto. Desceu as escadas tentando não fazer barulho, mesmo que por dentro quisesse gritar.
Na cozinha, Marta já estava acordada, como sempre, com o avental amarrado e o cabelo preso em um coque apertado. Ao ver Isabella, sorriu, mas o olhar atento revelava preocupação.
— Dormiu mal, minha flor?
Isabella tentou sorrir. O sorriso saiu torto.
— Um pouco… Aurora acordou de madrugada e quis dormir comigo.
Era verdade. A menina havia se arrastado sonolenta até seu quarto por volta das três da manhã, dizendo que o quarto estava “grande demais”. Isabella a acolheu nos braços sem pensar duas vezes. Talvez, no fundo, ela também quisesse uma desculpa para sentir algo puro naquela noite tão confusa.
Começou a preparar o café. O cheiro do pão tostando, o estalo da chaleira, o som metálico dos talheres. Tudo parecia mais alto. Mais denso. Como se o tempo estivesse suspenso em uma tensão invisível.
Foi então que os passos pequenos de Aurora ecoaram no corredor.
— Isa…? — chamou com a voz sonolenta, os olhos inchados de quem ainda estava entre o sonho e a realidade. — O papai já acordou?
Isabella se agachou, puxando-a para um abraço apertado.
— Ainda não, minha linda. Ele chegou muito tarde. Vamos deixar ele dormir mais um pouco, tá bem?
— Mas ele não me deu boa noite — murmurou com um biquinho, o olhar baixo.
E aquilo doeu.
Isabella sentiu uma fisgada no peito, mas não demonstrou. Apenas alisou os cabelos da menina com carinho.



VERIFYCAPTCHA_LABEL
Comentários
Os comentários dos leitores sobre o romance: A Babá Virgem e o Viúvo que Não Sabia Amar