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Aliança Provisória - Casei com um Homem apaixonado por Outra romance Capítulo 176

Alice

O sol tava rachando quando eu e Julio chegamos na pracinha perto da estação. A gente já vinha no embalo da marmita, que eu comi igual um trator sentada na moto quando estacionamos, porque o tempo era curtíssimo. O arroz quase entalou quando o Julio fez uma piada idiota.

— Não quero que você morra antes de entregar os kits — ele brincou, me entregando água e equilibrando a mochila cheia nas costas. — Pelo menos morre depois da última escova de dente distribuída, tá?

— Engraçadinho. Vamos logo, já terminei. — Guardei a marmita na bolsa e saí, empurrando o ombro dele de leve.

Rodrigo e Lúcia já estavam nos esperando, encostados num banco com cara de quem esperava há horas. Eles eram amigos da época da faculdade. Lúcia veio logo me abraçar, cheia de energia. Rodrigo levantou a mão num aceno contido, mas com aquele sorrisinho torto de quem acha tudo uma leve piada interna.

— Você quase perdeu o horário de novo né, Alice? — ele disse, ajeitando a camisa social que claramente não combinava com o calor.

— Quase nada. Só fiz o milagre da digestão instantânea — brinquei, tirando os kits da sacola.

A ideia era simples: entregar alguns kits com sabonete, escova, creme dental, absorvente, uma barrinha de cereal... Coisa rápida, mas que fazia diferença. A gente sempre dava um bom dia, puxava papo se a pessoa queria. Era coisa de coração e eu precisava disso.

Rodrigo foi direto pra um senhorzinho sentado num canto da calçada, começou a conversar com uma calma que me fazia lembrar que ele era o mais centrado da nossa turma. Julio estava todo metido a fotógrafo, mas ajudava. Ele entregava os kits e ainda perguntava se podia tirar umas fotos do projeto.

— Julio, pelo amor de Deus, para de posar com a sacola como se fosse campanha de perfume social — resmunguei, vendo ele fazer biquinho com um kit na mão.

— Isso aqui é engajamento consciente, bebê! — ele disse, rindo, antes de quase tropeçar num degrau invisível.

Eu e Rodrigo caímos na risada.

— Aí, Julio, vai ficar mais lindo ainda com a cara toda estragada de uma queda. — Rodrigo comentou, com aquele jeito seco que só ele tinha, mas sempre acertava.

A gente ficou ali por uns trinta minutos, mas foi como se o tempo tivesse passado voando.

Na hora de ir embora, me despedi de Lúcia com um beijo estalado na bochecha e Rodrigo me deu aquele abraço meio rápido, mas firme, que ele achava que escondia bem o carinho, que não escondia, aliás.

— Valeu, Rodrigo. Faz bem encontrar vocês no meio da loucura.

— A gente é tipo um reboque emocional. Te puxa antes de afundar — ele disse, ajeitando a mochila.

— Agora vai salvar a Justiça com seus livros de processo — brinquei.

— E você volta a fingir que ama seu chefe — ele rebateu, e eu gargalhei alto.

Subi no ônibus de volta pro trabalho e Júlio seguiu para um ensaio de bodas de prata, que era o sentido contrário ao meu.

Encostei a cabeça no vidro, fechei os olhos e respirei fundo. Não deu nem três minutos e o meu celular começou a vibrar. O peguei na bolsa e um calafrio subiu pela minha espinha, enquanto o nome da minha mãe piscava na tela.

Pensei em ignorar… mas atendi.

— Oi.

— Agora que atende?! — veio a voz dela, já no grito. — Tô ligando há horas!

— Eu estava almoçando, mãe… o que foi?

— O que foi? Seu pai tá morrendo, Alice! É isso que foi! Tá piorando e precisa ser transferido para Belos Campos com urgência!

Olhei em volta. O ônibus estava quase cheio e falei mais baixo, tentando manter a calma.

— Mãe… eu já disse que não tenho dinheiro pra isso.

— Ah, claro. Pra estudar você teve, e se virar sozinha na vida, também. Mas para ajudar seu pai? Nada!

— Eu sinto por isso, mas realmente não consigo ajudar você porque eu…

Engoli o resto da frase. Não queria começar aquela discussão ali.

— Ah, cala a boca! Você sempre foi ingrata, um erro! Eu devia ter te tirado quando descobri que estava grávida. Só assim eu não teria tanto desgosto!

Aquelas palavras me acertaram como um soco no peito. As pessoas começaram a virar o rosto, olhando pra mim. Uma senhora segurou mais forte a bolsa e um cara franzia a testa. Por mais que eles não conseguissem ouvir o que ela dizia, ela ainda gritava e dava para ouvir alguma coisa de longe.

Senti o rosto queimar de raiva misturada com vergonha.

— Você acha que eu tô bem, é isso? Você acha que eu tenho uma vida fácil? Mãe, eu não tenho nem os remédios da minha diabetes! Tô me virando como posso!

— Problema seu. Você que quis essa vida, agora se vira! Dá um jeito de levar seu pai! Se ele morrer, a culpa vai ser sua!

Fechei os olhos com força sentindo o peito apertado e a cabeça girando.

— Mãe… chega.

— O quê?

— Chega. Não aguento mais, eu não sou a vilã dessa história.

— Você é, sim. Sempre foi.

Desliguei o celular sem nem esperar que palavras dolorosas saíssem de sua boca novamente. Respirei fundo, ignorando umas duas pessoas me encarando e fiquei ali, com o celular na mão, tentando me acalmar. Meus olhos estavam cheios de lágrimas, e não suportou quando elas começaram a escorrer pelo meu rosto de forma silenciosa.

— Moça, tá tudo bem? — ouvi alguém perguntar, mas não respondi.

***

O movimento estava começando a engrenar no meio da tarde. Cumprimentei a cozinheira com um aceno e vesti o avental correndo, já pegando a comanda de uma mesa que tinha acabado de sentar. Um casal jovem, rindo de alguma piada interna que provavelmente eu não entenderia nem se me explicassem com legenda.

— Boa tarde. Já sabem o que vão querer? — perguntei com meu melhor sorriso automático.

Eles escolheram rápido e enquanto anotava o pedido, senti o estômago revirar. Não era fome, era aquele enjoo que às vezes batia quando o açúcar começava a oscilar. Respirei fundo, entreguei o pedido no balcão e fui direto pro banheiro.

Fechei a porta, encostei na pia e tirei da bolsa o potinho de comprimidos. Peguei um dos últimos e joguei na boca, sem água mesmo. O gosto amargo desceu rasgando, quase como se o remédio quisesse lembrar que o corpo tinha limites.

Abri o app do banco enquanto esperava a tontura passar. Três dígitos, três malditos dígitos.

Já tinha pagado a luz, faltava a internet, meus remédios e aquela parcela desgraçada do empréstimo. O resto como comida, água, gás e outras despesas eram Julio quem pagava. Graças a Deus a casa ele herdou do pai antes de falecer.

E então aquele pensamento veio, do nada, feito uma pedra no meio do peito.

Meu pai.

Eles erraram comigo e feio. Me jogaram pra fora, viraram as costas quando eu mais precisei. Me deixaram sozinha quando eu chorava pelo que perdi. Eu teria todo o direito de simplesmente não me importar.

Mas...

Suspirei.

Porque por mais que eu quisesse ser feita de pedra, eu não era. E se algo acontecesse com ele, e eu não tivesse feito nada? Se ele precisasse de ajuda e eu fingisse que não vi?

Me sentiria um lixo, um nada.

Com os dedos trêmulos, selecionei a maldita parcela do empréstimo e cancelei. Peguei o valor e transferi pra conta da minha mãe.

“Para ajudar com o que for preciso. Só tenho isso.” Escrevi na mensagem. Sem “beijo”, “saudades”, sem nada.

Sabia que o mês seguinte ia vir com os juros do inferno. Que o banco ia me engolir viva se eu atrasasse outra vez.

Mas dane-se.

Fechei o celular e respirei fundo, sentindo o ar gelado do banheiro bater no meu rosto. Me olhei no espelho por dois segundos.

— Vai, Alice — murmurei pra mim mesma. — Aguenta mais um pouco.

Saí do banheiro colocando e ajeitando o avental, disfarçando o nó na garganta. Voltei pra sala de atendimento com o sorriso que eu treinava todo dia.

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